Para se aventurar na produção literária, uma
mulher precisa contar com 500 libras anuais e ter seu próprio quarto.
Assim
pode se resumir a mensagem principal transmitida no ensaio “Um Teto Todo Seu”, publicado em
1928, pela escritora britânica Virginia Woolf. A obra nasceu a partir da
compilação de duas palestras proferidas pela autora sobre “A Mulher e a Ficção”
a uma plateia de jovens universitárias da Sociedade das Artes, de Londres.
Com cerca de 140
páginas, o livro traz a escrita aguçada, irônica e original da autora, abordando
um assunto que pode parecer tedioso hoje – a eterna desigualdade de tratamento
entre homens e mulheres, especificamente, no terreno da literatura.
Com um ardor
feminista que faria inveja às mais ferrenhas defensoras da igualdade entre os
sexos nos anos 70, já em 1928 ela se pronunciava em defesa de talentos que só
não haviam sido devidamente desenvolvidos porque a mulher fora repetidamente proibida
de se inserir num ofício dito exclusivamente masculino.
Segundo
ela, o fato de haver poucas escritoras na época pré-vitoriana, não tinha
fundamento na incapacidade da mulher, mas na sua sistemática desvalorização,
condenada a viver na sombra dos pais e marido, cuidando exclusivamente da casa
e dos filhos.
Para ilustrar sua
tese, ela imagina uma irmã fictícia para Shakespeare, Judith. Dotada de um
talento tão extraordinário quanto o do irmão “e com os mesmos belos olhos”,
Judith teria que enfrentar obstáculos diversos se quisesse fazer da escrita um
ofício, a começar por um casamento imposto pela família.
“Talvez ela rabiscasse algumas páginas às
escondidas no depósito de maçãs do sótão, mas tinha o cuidado de ocultá-las ou
atear-lhes fogo”.
Sempre imaginativa, ela vislumbra um
destino para a irmã de Shakespeare: aos 20 anos, fugindo de um casamento
arranjado pelo pai, segue para Londres e tenta o teatro, onde as portas lhe são fechadas. Grávida do
único sujeito que lhe oferece ajuda, Judith acaba pondo fim à vida, “numa noite de
inverno, e está enterrada em alguma encruzilhada onde agora param os ônibus em
frente ao Elephant and Castle”.
Para Virginia Woolf, o destino da irmã fictícia de Shakespeare e
de tantas outras mulheres de talento seria invariavelmente o silêncio ou o
desprezo social. Porque na sociedade pré-vitoriana, a mulher que
ousasse desafiar a ordem “natural” estava fadada a terminar seus dias “temida e
ridicularizada”.
Convicta, ela sugere que “em uma
feiticeira atirada às águas, uma mulher possuída por demônios, uma bruxa que
vendia ervas”, poderia estar “a trilha de uma romancista perdida, uma poetisa
reprimida, de alguma Jane Austen muda e inglória.”
Voltando seus olhos para a vida de suas
irmãs de sexo, Virginia afirma que a mulher sempre
servira para o homem como um espelho dotado “do mágico e delicioso poder de
refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural.”
“Eis por que tanto Napoleão quanto
Mussolini insistem, tão enfaticamente,
na inferioridade das mulheres, pois, não
fossem elas inferiores, eles deixariam de engrandecer-se”.
Esse é o motivo pelo qual, defende ela, as mulheres que alcançaram prestígio no ofício literário, como Emily Brontë
e Jane Austen, tinham uma dívida para com as precursoras anônimas, que, ousaram enfrentar os obstáculos e preconceitos de sua época, e “lhes
abriram o caminho, mesmo sem ter alcançado a glória merecida”.
“Em milhares de manuscritos descobertos na
Literatura, na maioria das vezes, anônimo era uma mulher. Porque se não lhe era
dado o direito de criar, o mínimo que ela poderia fazer era externar sua obra
sem assinar a autoria sobre elas”.
Considerando escrever romances uma tarefa
desafiante, Woolf prega que existe uma relação inevitável entre as condições
materiais e a produção literária.
“Tudo se opõe à probabilidade de que ela (a
obra) aflore íntegra e completa à mente do escritor. Em geral, as
circunstâncias materiais opõem-se a isso. Os cachorros latem; as pessoas
interrompem; o dinheiro tem que ser ganho; a saúde entra em colapso”.
Para as mulheres, segundo ela, essa equação
era ainda mais cruel, pois além de vencer a “indiferença do mundo” elas precisavam
enfrentar o preconceito e a hostilidade da sociedade.
“Haveria sempre aquela afirmativa — você
não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar e
a ser superada”.
Como proceder em cenário tão árido? –
perguntariam as jovens aspirantes a escritoras no início do século
XX. Para a autora, era preciso que rompessem,
urgentemente, com o destino que lhes
fora imposto: o de serem excluídas.
E isso só seria possível, com independência
financeira. Daí a frase que dá título ao ensaio.
Ter um teto todo seu subentende-se: ser
dona do seu nariz, de suas ideias, de sua vida.
Mais do que uma casa, um teto representa
posses, subsistência, condições materiais, liberdade para pensar, se expressar,
e acima de tudo, a paz necessária para que isso aconteça.
“Jane Austen escreveu até o fim de seus
dias”. “Como conseguiu fazer isso – diz o sobrinho dela em suas memórias – é
surpreendente, pois ela não tinha um espaço próprio para onde pudesse ir e a
maior parte do trabalho deve ter sido feito na sala de estar comum, sujeito a
todo tipo de interrupções corriqueiras”.
Antes de finalizar, ela elabora uma teoria
inovadora na qual os dois sexos poderiam ser complementares: para que a arte da
criação possa se realizar, é preciso abdicar das características de seu sexo:
“ser masculinamente feminina ou femininamente masculino”.
E conclui com um pedido: “ganhem dinheiro e
tenham seu próprio quarto”.
Profetizando que em cem anos as mulheres
teriam deixado de ser o sexo “protegido”, ela insiste que suas irmãs busquem seu espaço. Otimista, afirma que “deve haver,
neste momento, umas duas mil mulheres capazes de ganhar mais de quinhentas
libras por ano de um modo ou de outro, vocês hão de concordar em que a desculpa
da falta de oportunidade, formação, incentivo, lazer e dinheiro já não se
aplica.”
“Você devem, é claro, continuar a ter filhos,
mas, como dizem eles, aos dois e aos três, e não às dezenas e às dúzias.”
Finalizando o ensaio, a autora recorre à
imagem das mulheres que foram caladas,
sufocadas pelos limites de uma época e a todas as “irmãs de Shakespeare”
que nunca conseguiram revelar seu talento ao mundo, convicta de que “essa poetisa
que nunca escreveu uma palavra e foi enterrada numa encruzilhada ainda vive.
Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta
noite, porque estão
lavando a louça e pondo os filhos para
dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças
contínuas, precisam apenas da oportunidade de andar entre nós em carne e osso.”
Virginia alcançou seu propósito. Tinha um
teto todo seu, um marido cúmplice que a apoiava e fez valer sua voz, ainda que
não tenha conseguido enfrentar seus fantasmas interiores. Mas para as mulheres
que desejam se expressar pela escrita, seguindo carreira em literatura, suas
palavras nunca foram tão atuais.
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