segunda-feira, 1 de abril de 2013

Livro 91: Um Teto Todo Seu (Virginia Woolf)

Para se aventurar na produção literária, uma mulher precisa contar com 500 libras anuais e ter seu próprio quarto.  
Assim pode se resumir a mensagem principal transmitida no ensaio “Um Teto Todo Seu”, publicado em 1928, pela escritora britânica Virginia Woolf. A obra nasceu a partir da compilação de duas palestras proferidas pela autora sobre “A Mulher e a Ficção” a uma plateia de jovens universitárias da Sociedade das Artes, de Londres.
Com cerca de 140 páginas, o livro traz a escrita aguçada, irônica e original da autora, abordando um assunto que pode parecer tedioso hoje – a eterna desigualdade de tratamento entre homens e mulheres, especificamente, no terreno da literatura.
Com um ardor feminista que faria inveja às mais ferrenhas defensoras da igualdade entre os sexos nos anos 70, já em 1928 ela se pronunciava em defesa de talentos que só não haviam sido devidamente desenvolvidos porque a mulher fora repetidamente proibida de se inserir num ofício dito exclusivamente masculino.
Segundo ela, o fato de haver poucas escritoras na época pré-vitoriana, não tinha fundamento na incapacidade da mulher, mas na sua sistemática desvalorização, condenada a viver na sombra dos pais e marido, cuidando exclusivamente da casa e dos filhos.
Para ilustrar sua tese, ela imagina uma irmã fictícia para Shakespeare, Judith. Dotada de um talento tão extraordinário quanto o do irmão “e com os mesmos belos olhos”, Judith teria que enfrentar obstáculos diversos se quisesse fazer da escrita um ofício, a começar por um casamento imposto pela família.
“Talvez ela rabiscasse algumas páginas às escondidas no depósito de maçãs do sótão, mas tinha o cuidado de ocultá-las ou atear-lhes fogo”.
Sempre imaginativa, ela vislumbra um destino para a irmã de Shakespeare: aos 20 anos, fugindo de um casamento arranjado pelo pai, segue para Londres e tenta o teatro, onde as portas lhe são fechadas. Grávida do único sujeito que lhe oferece ajuda, Judith acaba pondo fim à vida, “numa noite de inverno, e está enterrada em alguma encruzilhada onde agora param os ônibus em frente ao Elephant and Castle”.
Para Virginia Woolf, o destino da irmã fictícia de Shakespeare e de tantas outras mulheres de talento seria invariavelmente o silêncio ou o desprezo social. Porque na sociedade pré-vitoriana, a mulher que ousasse desafiar a ordem “natural” estava fadada a terminar seus dias “temida e ridicularizada”.
Convicta, ela sugere que “em uma feiticeira atirada às águas, uma mulher possuída por demônios, uma bruxa que vendia ervas”, poderia estar “a trilha de uma romancista perdida, uma poetisa reprimida, de alguma Jane Austen muda e inglória.”

Voltando seus olhos para a vida de suas irmãs de sexo, Virginia afirma que a mulher sempre servira para o homem como um espelho dotado “do mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural.”
“Eis por que tanto Napoleão quanto Mussolini insistem, tão enfaticamente,
na inferioridade das mulheres, pois, não fossem elas inferiores, eles deixariam de engrandecer-se”.
Esse é o motivo pelo qual, defende ela, as mulheres que alcançaram prestígio no ofício literário, como Emily Brontë e Jane Austen, tinham uma dívida para com as precursoras anônimas, que, ousaram enfrentar os obstáculos e preconceitos de sua época, e “lhes abriram o caminho, mesmo sem ter alcançado a glória merecida”.
“Em milhares de manuscritos descobertos na Literatura, na maioria das vezes, anônimo era uma mulher. Porque se não lhe era dado o direito de criar, o mínimo que ela poderia fazer era externar sua obra sem assinar a autoria sobre elas”.
Considerando escrever romances uma tarefa desafiante, Woolf prega que existe uma relação inevitável entre as condições materiais e a produção literária.
“Tudo se opõe à probabilidade de que ela (a obra) aflore íntegra e completa à mente do escritor. Em geral, as circunstâncias materiais opõem-se a isso. Os cachorros latem; as pessoas interrompem; o dinheiro tem que ser ganho; a saúde entra em colapso”.
Para as mulheres, segundo ela, essa equação era ainda mais cruel, pois além de vencer a “indiferença do mundo” elas precisavam enfrentar o preconceito e a hostilidade da sociedade.
“Haveria sempre aquela afirmativa — você não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar e a ser superada”.
Como proceder em cenário tão árido? – perguntariam as jovens aspirantes a escritoras no início do século XX.  Para a autora, era preciso que rompessem, urgentemente,  com o destino que lhes fora imposto: o de serem excluídas.
E isso só seria possível, com independência financeira. Daí a frase que dá título ao ensaio.
Ter um teto todo seu subentende-se: ser dona do seu nariz, de suas ideias, de sua vida.
Mais do que uma casa, um teto representa posses, subsistência, condições materiais, liberdade para pensar, se expressar, e acima de tudo, a paz necessária para que isso aconteça.
“Jane Austen escreveu até o fim de seus dias”. “Como conseguiu fazer isso – diz o sobrinho dela em suas memórias – é surpreendente, pois ela não tinha um espaço próprio para onde pudesse ir e a maior parte do trabalho deve ter sido feito na sala de estar comum, sujeito a todo tipo de interrupções corriqueiras”.
Antes de finalizar, ela elabora uma teoria inovadora na qual os dois sexos poderiam ser complementares: para que a arte da criação possa se realizar, é preciso abdicar das características de seu sexo: “ser masculinamente feminina ou femininamente masculino”.
E conclui com um pedido: “ganhem dinheiro e tenham seu próprio quarto”.
Profetizando que em cem anos as mulheres teriam deixado de ser o sexo “protegido”, ela insiste que suas irmãs busquem  seu espaço. Otimista, afirma que “deve haver, neste momento, umas duas mil mulheres capazes de ganhar mais de quinhentas libras por ano de um modo ou de outro, vocês hão de concordar em que a desculpa da falta de oportunidade, formação, incentivo, lazer e dinheiro já não se aplica.”
 “Você devem, é claro, continuar a ter filhos, mas, como dizem eles, aos dois e aos três, e não às dezenas e às dúzias.”
Finalizando o ensaio, a autora recorre à imagem das mulheres que foram caladas,  sufocadas pelos limites de uma época e a todas as “irmãs de Shakespeare” que nunca conseguiram revelar seu talento ao mundo, convicta de que “essa poetisa que nunca escreveu uma palavra e foi enterrada numa encruzilhada ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão
lavando a louça e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas nunca morrem, são presenças contínuas, precisam apenas da oportunidade de andar entre nós em carne e osso.”
Virginia alcançou seu propósito. Tinha um teto todo seu, um marido cúmplice que a apoiava e fez valer sua voz, ainda que não tenha conseguido enfrentar seus fantasmas interiores. Mas para as mulheres que desejam se expressar pela escrita, seguindo carreira em literatura, suas palavras nunca foram tão atuais.

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