Quando Michele Fitoussi, jornalista e escritora
francesa (nascida na Tunísia) conheceu a marroquina Malika Oufkir numa festa em
casa de amigos comuns, no ano de 1996, uma ideia passou a ocupar sua mente.
Misturada à curiosidade de jornalista, havia o entusiasmo de escritora e o
interesse pelo destino singular desta mulher. “Quero que me conte sua história
e quero escrevê-la com ela”.
Filha mais velha do General Oufkir, morto em
1972, após tentar derrubar o rei do Marrocos, Hassan II, ao qual servia como Ministro da
Defesa, Malika e sua família tornaram-se vítimas de um dos mais estarrecedores casos
de atentado aos direitos humanos. Por ordem do rei, ela,
sua mãe e cinco irmãos foram levados
para a prisão. Malika tinha apenas dezoito anos. Seu irmão mais novo, menos de
três. Sem julgamento e sem direito à defesa, o cárcere durou quase duas décadas,
em condições desumanas e sem qualquer contato com o mundo exterior. Diante da
bela Malika, agora com mais de 40 anos, Michele Fitoussi decide que o mundo
precisava conhecer o drama da família Oufkir na voz de quem o vivera na
pele.
Aceito o convite, foram seis meses de conversas,
registradas em gravadores, e mais seis em que Michele escrevia e reescrevia
o relato, dando voz a Malika. “Contar já não era fácil. Ela se viu obrigada a
recomeçar várias vezes antes de me confiar episódios dolorosos. Em alguns
momentos eu temia que ela desistisse”. Mas ela foi até o fim. E o resultado
está no comovente livro, publicado no Brasil em 1999, com o título de “Eu, Málika
Oufkir, Prisioneira do Rei.”
São 363 páginas de dor, desespero, incerteza,
misturados com esperança e otimismo, sempre renovados. Nas palavras de Fitoussi, trata-se
de um documento apaixonante, doloroso, chocante, terrível. “Tremi, arrepiei-me,
tive pena, fome, medo com ela.” E são esses os sentimentos despertados no
leitor.
Mais do que uma vítima, Malika era um elo entre as
duas famílias. Filha mais velha do General Oufkir e da bela Fatema, aos cinco anos
de idade, a pedido do rei e com o consentimento dos pais, foi levada para viver
no Palácio Real, para fazer companhia à Princesa Lalla Mina. Foi
quando seu mundo mudou pela primeira vez. “Tirar-me de minha mãe era tirar
minha própria vida” revela Málika, que não sabe se sua mãe chorou como ela ao
vê-la partir, pois nunca conseguiu conversar sobre isso com os pais. Criada
inicialmente pelo rei Mohammed V, com a morte deste, três anos depois, seu
sucessor Hassan II assume o trono e a criação de Malika.
As visitas da mãe tornam-se escassas e ela acaba se
adaptando a uma vida de princesa, com luxo, riqueza, e uma rígida educação com
uma preceptora alemã. Crescendo entre concubinas e escravos, com viagens de
jato pelo mundo, contato com reis, chefes de estado e artistas de cinema, ela é
vigiada permanentemente por guarda-costas e vê a vida pelos vidros dos
automóveis. Foram 11 anos de uma existência dúbia: possuía “uma infância
de sonhos, tinha tudo o que desejava e até mais” e ao mesmo tempo sentia “uma
falta cruel da família”.
Enquanto
Malika cresce longe de sua família, seu pai biológico conquista cada vez mais
influência junto ao rei. Em pouco tempo, torna-se figura temida nos círculos
dissidentes e o homem mais odiado do Marrocos. Nomeado Ministro do interior em 1967, torna-se, em 1971, Ministro da Defesa. Nessa época, Malika já com 16 anos, decide pedir
permissão ao rei para voltar para a casa dos pais. Para sua surpresa, o rei
consente. Ao chegar, novo choque: passara tanto tempo longe que mal conhecia os
irmãos, Myriam (Mimi) e Raouf. E menos
ainda Mouna-Inam (Maria), Soukïna e Abdelatiffe, nascidos durante sua ausência.
Por algum tempo sentiu-se uma estranha. Mas logo começou a desfrutar da liberdade e do conforto da vida fora
dos Palácios, que seu pai, cada vez mais poderoso, lhe oferecia. Festejou seus 18
anos como toda jovem:depois de dançar a valsa, enfiou se numa calça jeans e
dançou até o dia raiar. Era o ano de 1972 e seu conto de fadas estava prestes a terminar.
Em agosto
deste ano, com a tentativa de golpe fracassada, a morte de seu pai é forjada
como suicídio. Após os quatro meses de
luto oficial, o rei ordena que a família Oufkir seja enviada a uma prisão. Segue-se
então a saga da família Oufkir por duas décadas de maus-tratos. Passando
por cinco cárceres diferentes no deserto do Saara, eles vivem em condições
desumanas, passando fome, sede, frio, se alimentando de comida estragada, sem
cuidados médicos e sem contato com nada do mundo exterior – jornais, livros ou
mesmo objetos essenciais como espelhos. Habituaram-se a conviver com
ratos e baratas, comer pão sujo de urina de animais e até a passar meses na
mais completa escuridão. As tentativas de suicídio não davam certo e as
feridas simplesmente “cicatrizavam”.
Os sofrimentos inimagináveis e que pareciam
surreais têm um desfecho cinematográfico: em 1991 quatro dos irmãos conseguem fugir
através de um túnel cavado no chão com a ajuda de uma colher e da tampa de uma
lata de sardinhas. Após alguns dias, entram em contato com uma rádio francesa. Com a ação da comunidade internacional, o rei acaba por libertar
o resto da família, mesmo mantendo-os em prisão domiciliar por alguns anos. Somente
em 1996, após 24 anos de cárcere, a família Oufkir receber permissão para
deixar Marrocos.
Avaliar a história de Málika sob o ponto de vista ocidental
e cristão constitui uma tarefa dificílima. Se já nos é custoso entender uma
cultura que permite um rei possuir várias esposas, concubinas e escravos, menos
ainda compreendemos um sistema que permite que pessoas sejam presas à
revelia, sem julgamento. Mais ainda, sendo elas crianças, cujo único pecado era
ser filho de um suspeito de traição ao rei. Custa-nos, também, admitir que essa história
tenha acontecido em pleno século XX, sem que tenha havido durante décadas, qualquer intervenção
da mídia e ou de organizações mundiais em favor da família Oufkir. Assim como é
difícil entender como uma menina de cinco anos tenha sido levada para longe dos
pais, apenas para atender ao pedido de um
rei.
Nessa história há, em nosso entender, muitos culpados, e não apenas o General
Oufkir. Contudo, não é o que parece pensar Malika, co-autora deste livro, que
pouco se rebela contra sua sorte. Os personagens desse conto macabro, aos
poucos desaparecem. O rei Hassan II faleceu em 1999. A princesa Lalla Mina, em
2012, sem ter contato com a irmã adotiva. Tanto Raouf quando Soukianna,
escrevem seu próprio livro a respeito da tragédia. E todos se mantém
incrivelmente íntegros e quase felizes nos dias de hoje. Muitas respostas
continuam em aberto.
Mais do que o relato de uma sobrevivente, esta é uma lição
de como não perder a dignidade, mesmo que a vida lhe negue muitas chances.
Esta é a história de uma mulher que nunca teve o direito sobre sua
própria vida, seja em sua família ou família adotiva. Que foi privada de
escolhas durante bem mais do que as duas décadas de prisão. Uma mulher que
começou a viver sua própria vida aos 43 anos.
A menina cujo nome
quer dizer rainha, viveu como uma princesa dos cinco aos 18 anos. E
sobreviveu como prisioneira por vinte anos.
Essa é a história de Malika
Oufkir, como ela nos conta, como ela se recorda e como nós jamais poderemos
esquecer.
Livro maravilhoso e uma história de superação . Li há muitos anos atrás, mas sempre recomendo.
ResponderExcluirBoa resenha. Obrigado
LIVRO MARAVILHOSO E CHOCANTE. Recomendo.Quando iniciamos a leitura não dá vontade de parar mais.
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