Escrito a partir de dez anos de
pesquisa investigativa, “1808”, do jornalista Laurentino Gomes, busca retratar
um dos episódios “mais apaixonantes e revolucionários da história do Brasil e
de Portugal”: os treze anos em que a corte portuguesa viveu em sua colônia
brasileira (de 1808 a 1821). Com 29 capítulos, acrescidos de notas e
referências, além da reprodução de imagens do Rio de Janeiro e dos costumes da
época retratados por Jean Baptiste Debret, o livro apresenta linguagem fácil e
acessível, podendo conquistar leitores por meio de uma fórmula que tem feito
muito sucesso nos últimos anos: contar a História de um jeito mais atrativo e
descontraído.
Com projeto de capa
vistoso, é perceptível no subtítulo o apelo comercial: “Como uma rainha louca,
um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a
História de Portugal e do Brasil”. Uma chamada instigante, feita especialmente para vender o
produto que, no entanto, mais promete do que cumpre.
Como documento histórico, o
livro deixa um pouco a desejar. Embora de leitura agradável, se estende demais em alguns
tópicos a despeito de outros. Apesar disso, até mesmo por causa da
temática, o livro é extremamente interessante. Nele, o autor descreve a
trajetória de Dom João VI no Brasil, movimento que provocou, em pouco mais
de uma década, uma transformação na colônia que não ocorrera em três séculos,
desde o descobrimento.
Nos capítulos iniciais, Gomes descreve o cenário da
pátria lusa no século XIX. Uma das nações mais atrasadas da Europa, Portugal se
debatia em dificuldades econômicas. Após três séculos do período de ouro das
grandes navegações e descobertas, nem de longe lembrava a metrópole dos tempos
de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Com uma economia essencialmente
extrativista e mercantil, dependia de mão de obra escrava para “sugar” a
riqueza de suas colônias, que incluíam minas de ouro e diamantes, lavouras de
cana-de-açúcar, algodão, café e tabaco. Com o avanço das tropas francesas por
toda a Europa, Dom João VI, o Príncipe Regente não teve alternativa a não ser
despistar Napoleão, empreendendo uma tresloucada fuga com a corte para o
Brasil. Em 29 de novembro de 1807, dezenas de naus apinhadas de gente
deixavam o porto de Lisboa. Era a família real, acompanhada de lacaios,
bajuladores e suas numerosas famílias.
Com o Príncipe
Regente seguia sua mãe, D. Maria I, a rainha louca, e os dois herdeiros do
trono, os príncipes D. Pedro e D. Miguel. O restante da família real, incluindo
sua esposa Carlota Joaquina, foi distribuído em outros três navios. Deixado
para trás, o povo português encara a fuga da corte para o Brasil como uma
traição. Abandonado à própria sorte, Portugal viveria os piores anos de sua
história. Na viagem, a situação não era das melhores: o suprimento de água e
comida mal dava para 2 ou 3 semanas. A travessia durou três meses, em condições sanitárias
precárias. Além de mortes por escorbuto e outras moléstias, uma infestação de piolhos
obrigou todos a rasparem a cabeça. Finalmente, a 22 de janeiro de 1808, os
navios aportaram em Salvador. A princesa Carlota Joaquina, suas filhas e
damas da corte desembarcaram com turbantes rústicos enrolados na cabeça para
disfarçar a cabeça raspada devido aos piolhos. As damas da sociedade
soteropolitana, acreditando tratar-se de uma moda europeia, logo adotaram o
costume. O adereço até os dias de hoje faz parte da indumentária das típicas
baianas. Somente em março, a esquadra de Dom João VI atracaria na Baía de
Guanabara, onde casas locais são requisitadas para a coroa portuguesa e seus
moradores, desalojados
O Brasil, que antes da chegada da
corte constituía “um amontoado de regiões mais ou menos autônomas, sem comércio
ou qualquer forma de relacionamento”, e ligados apenas pelo idioma, é
elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Entre
outras ações, Dom João ordenou a abertura dos portos às Nações Amigas (no caso,
Portugal e Inglaterra), autorizou a criação da primeira escola de Medicina
do Brasil, a construção de fábricas e a abertura de novas estradas, proibidas
por lei desde 1733. Criou ainda o Banco do Brasil, para cunhar a moeda
que circularia por aqui.
Capítulos especiais são dedicados a duas figuras quase folclóricas: Dom João VI e Carlota Joaquina. Apesar de Gomes afirmar no começo do livro que discordava da forma caricata com que a Família Real portuguesa era retratada nos livros e filmes, ele não foge ao estilo e repete a mesma fórmula. Segundo ele, além de “despreparado para reinar, tímido, supersticioso, temeroso de caranguejos e trovoadas”, Dom João era “gordo, feio, flácido e devorador voraz de franguinhos, que guardava nos bolsos de seus uniformes, sempre sujos e engordurados”. Junte-se a isso o fato de que ele não era adepto de banhos e passava dias com o mesmo casaco puído, que seus escravos costuravam em seu próprio corpo enquanto ele dormia. Apesar de fraco e inseguro, Gomes credita a Dom João VI o mérito de ser o único rei que conseguiu enganar Napoleão Bonaparte e, sendo dócil e afável, realizou um governo medianamente satisfatório. Já Carlota Joaquina é descrita como “uma esposa infiel, feia, maquiavélica e infeliz”. Filha de Carlos IV e irmã de Fernando VII, casou-se por procuração com o Príncipe Regente. Ele tinha dezessete anos, ela, apenas dez. O casamento demorou anos para se consumar. Tiveram nove filhos num período de 13 anos, mas formavam um casal estranhamente oposto: ele, gordo e bonachão, ela magra, feia e ardilosa. Conspirou tantas vezes (sem sucesso) contra o marido, que acabaram na separação de corpos, mesmo mantendo-se casados. Ao contrário de D João, Carlota nunca gostou do Brasil e quando embarcou de volta a Portugal limpou a terra da sola dos sapatos, afirmando que "desta terra não gostaria de levar nem mesmo o pó". Quando as cortes em Portugal, já livres de Napoleão Bonaparte e de seus “protetores” ingleses exigiram a volta da Família Real para o Continente, D. João VI – que assumira o trono após a morte de D. Maria I, “a louca” – deixou o Brasil a cargo de seu filho D. Pedro. Antes, recomendou que, em caso de revolta, tomasse a coroa para si, “antes que algum aventureiro o fizesse”. Em 1822, Dom Pedro I proclama a Independência do Brasil. Mas isso já é outra história. E outro livro.
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