terça-feira, 16 de abril de 2013

Livro 107: Kitty aos 22: Divertimento (Reinaldo Santos Neves)



Após um hiato de dezesseis anos, desde a publicação de Sueli – Romance Confesso, em 1989, Reinaldo Santos Neves, um dos mais conhecidos escritores contemporâneos capixabas, publicou, em 2006, um livro que se pode dizer diferente de tudo que fizera antes. Uma obra com temática e linguagem juvenil e com mais ação que reflexão. Já no título, “Kitty aos 22: Divertimento”, Reinaldo prepara o leitor para o que vem a seguir: divertimento.

O livro tem um quê de rebeldia dos anos 50, que remete a alguns escritores norte-americanos, como Kerouac ou Bukovski, utilizando-se de uma linguagem mais chula, porém sem a sustentação da época, já que a história se passa nos pouco conflituosos anos 2000. 

O enredo é ambientado em Vitória, terra natal do autor, onde um narrador registra os acontecimentos ocorridos na última semana de férias de Kitty na fictícia Universidade Católica, na qual cursa Comunicação Social. Bem-nascida, filha de pais separados, moradora de bairro nobre, Kitty, cujo verdadeiro nome é Catarina, anda pela cidade com seu Audi vermelho que - claro - ganhou de "Daddy" quando passou no vestibular. Loura, de olhos azuis, Kitty chama atenção por onde passa e sabe disso.

“Corpo que tudo que veste cai bem, desde o vestido longo de seda até o short cavado de jeans; desde a rósea camisola de alça até a nudez de teor absoluto.” Além de estudante de jornalismo, Kitty mantém um blog cujo título se refere a uma música do The Police, “Every Little Thing She Does”.

O mundo de Kitty se resume a isso: além de ser "bonita pra caralho", estuda Jornalismo, vive um namoro insosso com um decorador que ela suspeita ser gay (e que na trama se encontra fora a trabalho) e uma amizade desigual com uma suburbana chamada Lu, mãe solteira, cujo maior projeto na vida é arrumar alguém para sustentá-la e a sua filha.

Trata, com indisfarçável ar blasé, a família fora dos padrões: Daddy (que depois da separação se assumiu gay), mora no Sul e manda a pensão para as filhas religiosamente. Mummy, que aos 43, poderia ser bonita se "tivesse dez anos a menos" e se não vivesse de ressaca de Vodka. Phil, o desocupado namorado de Mummy, um faz tudo da família a quem a jovem trata como um cachorrinho (mas a quem ela convoca quando se encontra em alguma roubada) e a irmã Déia, uma nerd com piercing na língua que ainda não fez estreia na night. Não falta ainda à trupe uma fiel escudeira, empregada da família, que lhe prepara sanduíches – Kitty não faz a própria comida.

Os capixabas irão reconhecer na trama hábitos e paisagens como a travessia da Terceira Ponte com vista para o Convento da Penha, ruas famosas como a Chapot Prevot, a fama da interiorana Cachoeiro, de ser a capital secreta do mundo, a Praia de Camburi,  em Vitória, o balneário de Guarapari e uma fictícia boate Glee que remete a outra, igualmente famosa dos anos 80 e 90, situada na Cidade Saúde.

A história começa com a notícia de um assassinato duplo ocorrido em uma mansão no alto de uma pedra, num bairro bonito da cidade: um casal de gays que, suspeita-se, tenham sido mortos por "três bofes." Capixabas reconhecerão a referência à Ilha do Frade, bairro de classe média alta em Vitória.

Kitty comparece à cremação do casal, num gesto de solidariedade, embora não consiga derramar uma lágrima.

"Cemitério era pra Kitty o mais inusitado dos lugares. Estava ali só porque tinha o maior dos motivos de força maior: funeral de gente muito querida: um casal de amigos: Roberto e Benjamim: Bobby e Benjy, para os íntimos, como ela."

É lá que ela conhece o enigmático Bruno Hodiak, catarinense, empresário da noite, um dos promotores de um grande desfile de moda na cidade, o Victoria Fashion Week.

"Kitty tirou os óculos e apontou bem pro olho dele
a mira do seu olhar.(...)
Tinha verde o olho, carnudo o lábio, bonito o cabelo. Era um pouquinho velho, trinta anos, por aí, mas isso não chega a ser um defeito.
Olhar desdenhoso de Kitty virou olhar de surpresa. Carne nova no pedaço. E filé de primeira. Ou quase: pois Kitty viu no rosto dele, cagando-lhe a face esquerda, uma feia mancha escura.
Ninguém é perfeito, pensou Kitty, perdendo o tesão".


Com ou sem a mancha no rosto, o empresário consegue que ela o acompanhe no desfile de moda, onde a garota irá viver momentos de glória tão provincianos quanto ela julga ser sua cidade natal (a quem chama de Vic ou Mic, de Mictória). Nesse evento, para ser diferente, Kitty comparece vestida com simplicidade, num "vestidinho de toalha de mesa" e – surprise! – faz o maior sucesso.

A despeito dessa descompromissada temática juvenil, o livro traz em alguns momentos, um insuspeito clima noir, como a visão de um parque de diversões abandonado num trecho ermo da cidade. Ou um soturno personagem que clama para si a alcunha de O Relinchador (e que faz exatamente isso: relincha qual um cavalo em madrugadas desavisadas de Vitória). O desencadear dos acontecimentos sugere que mais do que literatura, esta obra foi imaginada quadro a quadro, como um roteiro de cinema.

Não faltam referências literárias, como a mancha negra no rosto de Bruno (que segundo Reinaldo, é irmã da mancha que cobre o rosto do personagem Flory, de "Dias na Birmânia", de George Orwel. E o cínico namorado da mãe de Kitty, Phil, que mal esconde sua atração pela enteada, se revela um patético Humbert Humbert tupiniquim, babando por sua Lolita.

Para compor o livro, Reinaldo Santos Neves revela que recorreu a pesquisas em inúmeros blogs e fotologs na internet, buscando conhecer o pensamento e o vocabulário dos jovens da época, incluindo sua preferência musical. E confessa que, jazzista de carteirinha, não entende nada de rock. Mas Kitty, sim, o que explica por que cada momento do livro tem como pano de fundo canções da moda - Alanis Morrisset, Avril Lavigne, Coldplay (lembrem-se, a história se passa nos anos 2000).

Tentando entender através desses blogs o universo que pretendia abordar, Reinaldo acaba exagerando no linguajar dos personagens,  incluindo a principal, cujos traços de rebeldia se resumem a fumar dois ou três cigarros, usar palavrão como vírgula e ter uma vida sexual muito bem resolvida (apesar da regra de nunca ceder no primeiro encontro).

Tudo parece muito pequeno no mundinho de Kitty, sua fala é vazia, seu vocabulário é pobre e seus sentimentos mal transparecem. Talvez seja essa mesma a intenção do autor.
Entre mortos e feridos, o livro tem grandes momentos, nos quais se percebe o singular e irrepreensível texto de Reinaldo Santos Neves (o primeiro capítulo é primoroso), milimetricamente trabalhado, com sua fina ironia nas entrelinhas.

O livro fica mais interessante nos capítulos finais, quando ganha o ritmo de um filme de suspense, onde a personagem deve lutar para se desvencilhar de uma rede na qual ela mesma - e de livre e espontânea vontade - se meteu.

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