quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Livro 59: Amok (Stefan Zweig)


O escritor austríaco judeu Stefan Zweig, que durante o nazismo perdeu a nacionalidade e se exilou  em vários países até chegar ao Brasil, onde cometeu o suicídio em 1942, é conhecido por seu estilo - narrativas concisas, econômicas sem perder contudo  o tom dramático, passional, quase cinematográfico. Não por acaso é um dos autores que teve mais obras transformadas em filme – Carta para uma desconhecida, 24 horas na vida de uma mulher etc. 
É justamente essa característica que sobressai no pequeno livro Amok, publicado em 1922.
Basta dizer que a expressão Amok, que dá nome ao livro, descreve um estado de loucura, torpor, paixão súbita que acomete uma pessoa repentinamente levando-a a atos impensados, desesperados a ponto de se cometer um ato criminoso, contra si ou contra outra pessoa. 

Logo o leitor será transportado para dentro da história narrada por um médico a outrem, a bordo de um navio em alto mar. Ele revela ao passageiro, em tom confessional,  os acontecimentos que precederam a viagem e que haviam mudado sua vida para sempre. 
A narrativa,  que começa relutante, adquire tons negros e assustadores, seguindo num crescendo em que as cenas tomam vida diante dos olhos do leitor, que adentra a história como se a presenciasse, in loco, ou no mínimo, numa sala de cinema.

Trabalhando num vilarejo pobre na Malásia, o médico ocidental recebera a visita de uma jovem inglesa rica e casada(a primeira mulher branca em anos) com um pedido inusitado. A narrativa de Zweig sutilmente revela sem revelar os apuros em que ela se metera. Só o médico podia ajuda-la a salvar seu casamento, por conta de uma gravidez indesejada. Dá-se um jogo entre ela e o médico, onde ele, arrebatado por um sentimento inexplicável (fascínio? Paixão?loucura) toma uma atitude inesperada e fora do convencional.Dá a entender à mulher que para atender o seu pedido, deseja outra coisa que não dinheiro. Quando esta se retira ofendida, ele se arrepende amargamente e desde então é tomado por um sentimento de obsessão.Seguem-se capítulos de emoção, desespero, ânsia e quase loucura. O médico acabará irremediavelmente marcado para sempre. 
Nessa curta história temos contato com Stefan Zweig em seu melhor estilo: um drama psicológico, relações interepessoais dramáticas, segredos a se revelar, culpa, paixão e loucura. O ser humano em conflito com o mundo e consigo mesmo e por fim, uma reflexão sobre a morte.
A leitura de Amok nos arrebata de uma forma que ao chegarmos ao final nos encontramos  sem fôlego, sem ar, completamente atônitos diante da profundidade da obra de Zweig. Raros autores consegue transmitir tão intensamente o que se passa no âmago, no coração e na alma de um personagem. Li Amok como se fosse o filme e nas páginas finais tive a sensação de quem fica estático diante da tela, sem conseguir levantar da cadeira, enquanto sobem os créditos. The End.





quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Livro 58:Quase Memória, Quase Romance (Carlos Heitor Cony)


No ano de 1995 um pacote é deixado na recepção do hotel que Carlos Heitor Cony costumava frequentar. Alguém havia pedido que lhe fosse entregue em mãos. Imediatamente, ele reconhece no embrulho, na letra sobrescrita e no nó cuidadoso, traços muito familiares.
"Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele fazia aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário (...)”
Porém, uma coisa não fazia sentido: seu pai, o jornalista Ernesto Cony Filho havia falecido dez anos antes.
Desse misto de lembrança e ficção, fantasia e emoção, ironia e carinho nasceu o romance Quase Memória.
Levando para casa o pacote, o autor dedica-se a observá-lo, sem coragem de abri-lo. "Queria apenas ficar sozinho, não exatamente para abrir o envelope, mas para pensar no assunto, embora se tratasse de assunto impensável".
É assim que aquele pacote fechado abre um baú de recordações.
Um aroma presente no embrulho o remete a um pote de brilhantina colocado pelo pai em suas bagagens de seminarista e que fora confiscado no primeiro dia pelo padre Cipriano, sob a alegação de ser "um emblema de luxúria".
Logo mais, ele sente no pacote o cheiro de manga, fruta pela qual seu pai era "esganado". E junto com este, lhe vem a lembrança do dia em que seu Ernesto, tentando roubar mangas do cemitério (segundo ele, as melhores que existiam), acaba se esborrachando em cima de uma carroça de flores, diante de parentes e amigos do morto. "Eu olhava para o chão, querendo ser enterrado também, junto com a minha vergonha."
Entre cheiros e imagens, o filho reconstitui, carinhosamente, momentos marcantes vividos com o pai. A técnica de fazer o embrulho, a perfeição do nó no barbante, o cacoete constrangedor que o levava a golpear o ar, cinco a seis vezes ao dia, como a se proteger de um ataque invisível. Sua sede de viver, de acordar todos os dias pensando em fazer algo novo. O costume de contar casos como se tivessem mesmo acontecido. E a sutileza de fabricar, com o máximo de apuro, qual fosse obra de arte, os balões que soltava aos céus em Noite de São João.
Vender rádios, fabricar perfumes, consertar antenas, criar galinhas. Fosse o que fosse, tudo o que Ernesto fazia, era com entusiasmo. E a cada nova empreitada, ânimo renovado. "Era do tipo que recebia um bom-dia como uma homenagem."
Durante a leitura das peripécias de Ernesto e seu filho mais novo, descobrir o que é verdade e o que é imaginação, torna-se desnecessário. Mais importante é entender que o remetente sem nome nada mais é do que a memória filial.
Ao fim desse "quase-romance", o pacote que encerra tantas lembranças, permanece intacto. E, ao que parece, cumpre sua missão, de restabelecer um elo entre pai e filho, uma derradeira aventura, um último segredo.

Quase Memória
Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1995.
O romance marcou a volta de Carlos Heitor Cony, depois de mais de vinte anos afastado da literatura. Conquistou, em 1996, os prêmios Jabuti de Melhor Romance e de Livro do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Livro 57: Olga (Fernando Moraes)


Olga, de Fernando Morais, que conta a história de Olga Benário Prestes, primeira mulher do líder comunista Luis Carlos Prestes, que foi entregue a Hitler pelo Governo Getúlio Vargas é um livro que pode ser lido de várias formas.
Como documento histórico sobre um episódio até então pouco abordado em livros e jornais do país. Como uma história de amor com reviravoltas impressionantes, em que a mocinha enfrenta os mais variados obstáculos e perseguições até que é afastada definitivamente de seu parceiro. E como o que realmente é: a trajetória de uma mulher que colocou o dever e o compromisso para com uma causa acima de qualquer coisa em sua vida, seja a formação de uma família, criação de filhos e uma existência tranquila.
Publicado em 1985 pela Editora Alfa Ômega e sucesso desde a primeira edição, o livro é o resultado de um minucioso trabalho de pesquisa e reportagem, no qual o autor reuniu informações preciosas, algumas delas inéditas sobre a vida de Olga desde a juventude na Alemanha a sua passagem pelo Brasil, de onde foi extraditada para seu país de origem e morta pelo nazismo num campo de concentração.
Muitas dessas informações tiveram que ser colhidas no exterior, pois, ao iniciar a pesquisa, o autor percebeu, com espanto, que no país “não havia praticamente nada” sobre a personagem e “até a historiografia oficial do movimento operário brasileiro, relegara invariavelmente a ela o papel subalterno de "mulher de Prestes".
Foram três anos de pesquisas com o apoio de colaboradores como o advogado e bibliófilo Antonio Sérgio Ribeiro, que vasculhava coleções de jornais e revistas da época, e de “anônimos militantes comunistas de vários pontos do país, (...), interessados não só em ajudar-me, mas em enriquecer a verdadeira arqueologia em que me meti para reconstituir com a maior fidelidade possível esta história de amor e de intolerância”. Mas a maior fonte do autor foi mesmo o lendário Luís Carlos Prestes que lhe concedeu várias entrevistas. Nelas “o rígido comunista que transmitia a imagem de um homem de aço”, não conseguia esconder a emoção ao revelar detalhes da personalidade de sua primeira mulher e de sua curta convivência com ela, além de novos fatos e personagens da revolta comunista de 1935.
Filha de uma abastada família burguesa, a bela e altiva Olga, desde cedo empreende ativa colaboração no partido comunista, preferindo negar suas origens a abrir mão da causa na qual acreditava. Em pouco tempo, sua personalidade destemida e comprometida conquista o respeito das lideranças, sendo ela designada para as missões cada vez mais importantes.
Na mesma época, no Brasil, Luís Carlos Prestes, então capitão do exército, comandava um contingente de centenas de soldados numa marcha contra o Governo e pelo voto secreto e ensino gratuito. Eles percorrerão 25 mil quilômetros em 12 estados brasileiros, e apesar de não ter alcançado seus objetivos, o movimento fica conhecido como a Invicta Coluna Prestes e seu líder como o Cavaleiro da Esperança. Até então, Prestes  pouco sabia sobre Marx, Lênin e a Revolução Bolchevique. Três anos depois estaria filiado ao Partido Comunista.
Em 1934, Olga vivia na Rússia e trabalhava na clandestinidade para o Partido quando foi convocada pelo Secretário do Komitern, Dmitri Manuilski para uma missão: escoltar o agora líder comunista Luis Carlos Prestes que pretendia voltar ao Brasil para aqui iniciar a Revolução Comunista.
 “Depois de muita discussão, e de analisarmos dezenas de nomes, concluímos que só uma pessoa tem condições de fazê-lo chegar a seu país em absoluta segurança: Você”.
Olga aceitou quase que imediatamente. “Naquele verão de 1934, embora com apenas 26 anos, ela era considerada - uma bolchevique completa: falava fluentemente quatro idiomas, conhecia a fundo a teoria marxista-leninista, atirava com pontaria certeira, pilotava aviões, saltava de paraquedas, cavalgava e já tinha dado provas indiscutíveis de coragem e determinação”. 
No primeiro contato com Prestes, ela que já havia ouvido falar do Cavaleiro da Esperança, decepcionou-se um pouco. Esperava um “gigante latino”, mas encontrou um homem franzino de 1m60.
Com identidades falsas – primeiro, o espanhol Pedro Fernández e a estudante russa Olga Sinek, e depois, o casal de portugueses Maria e Antonio Villar, os dois seguem viagem: Leningrado, Finlândia, Paris e finalmente um transatlântico para Nova York. Era o ano de 1935 e Prestes fica impressionado como uma jovem considerada “uma comunista rígida e disciplinada dedicasse suas horas de descanso a tecer delicadas peças de crochê". A bordo do navio, ocupando o mesmo quarto, para manter a fachada, as afinidades intelectuais e políticas os aproximam ainda mais e quando desembarcam em Nova York, em 26 de março, o que até então era uma ficção, havia virado realidade: já eram de fato marido e mulher.
  “Para um homem de 37 anos, Prestes vivera precocemente toda sorte de experiências políticas: liderara uma rebelião militar, conspirara contra governos, fora preso e exilado, convivera com os mais importantes dirigentes comunistas na União Soviética. Mas o rigor, a disciplina e a dedicação à causa tinham cobrado dele um preço alto: até então, Luís Carlos Prestes nunca tinha estado com uma mulher”. 
 No Brasil, o casal leva uma vida clandestina, num aparelho da rua Honório, no Meyer. Era uma “casa modesta, com duas salinhas pequenas, dois dormitórios e uma cozinha. Nos fundos, num cômodo separado da casa, o banheiro.” De lá comandavam as operações. “Como os muros laterais do quintal eram muito baixos e havia vizinhos de ambos os lados, eles só podiam ir ao banheiro à noite, atravessando o quintal pelas sombras e com as luzes de fora apagadas. (...)Mesmo submetidos a absoluta clandestinidade, os dois não estavam isolados do mundo e da Política”.
Liderando  o movimento antifascista no Brasil com a ajuda de Olga, Prestes participa da preparação da insurreição armada contra o governo Vargas, que estabeleceria no país um governo Popular Nacional Revolucionário. Com o fracasso do levante, a polícia política de Vargas, na pessoa do violento Filinto Muller, empreende furiosa caça aos comunistas no país, em especial a Luís Carlos Prestes e sua esposa.  Depois da prisão de outros membros do partido o cerco chega ao fim, Olga e Prestes são presos e separados para sempre.
Na prisão, ela descobre que está grávida. E apesar da mobilização pedindo por sua permanência no Brasil, já que esperava uma criança filha de um brasileiro, Olga é extraditada em 1936, para a Alemanha de Hitler. Na prisão, daria a luz a uma menina, Anita Leocádia, (homenagem à mãe de Prestes e à heroína Anita Garibaldi. Quatorze meses depois, a criança é entregue à avó e tia paternas. Mandada para o campo de concentração de Ravensbrück, Olga perde a vida numa câmara de gás em 1942. Antes disso, seu legado são as cartas que envia para a sogra e a cunhada no Brasil, com mensagens comoventes para a filha e para o marido.
Anita Leocádia
Segundo Moraes, o livro não é sua versão sobre a história de Olga e da Revolução de 35, mas sim a versão que ele considera a verdadeira. Ao lê-lo, não nos cabe julgar as razões de Olga em defender a causa comunista e se o comunismo como regime foi fiel àquilo a que se propunha. Cabe admirar a força dessa mulher que cumpriu sua missão até o fim e por conta disso foi entregue grávida para morrer nas mãos dos nazistas de seu país. Cabe lembrar uma mulher que deu à luz uma criança na prisão e que só conseguiu ficar com ela o tempo suficiente até que seu leite secasse, sendo então mandada para um campo de concentração e morta na câmara de gás como milhões de outros judeus.
Cabe, principalmente cuidar para que essa história de “amor e intolerância” não caia no esquecimento. Rico em reconstituições e detalhes, o livro de Fernando Morais é detalhado, denso, fiel e respeitoso à memória de Olga prendendo  o leitor como se fosse uma obra de ficção. E o trágico é  se trata de uma história real.  
É impossível, mesmo constatando a obstinação e dureza da “camarada” Olga durante os acontecimentos precedentes, deixar de nos comover, em seus momentos finais, com as cartas de mãe para a filha que ela jamais tornaria a ver. Um livro – e uma história – para não serem esquecidos.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Livro 56: Duas Vidas (Janet Malcolm)


Considerada um dos grandes nomes da literatura modernista, a escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) talvez tenha ficado mais conhecida por sua personalidade polêmica do que propriamente por sua obra. Com uma escrita original e, de certa forma, hermética, alguns de seus romances, como "Três Vidas" e "A Autobiografia de Todo Mundo" foram mais aclamados pela crítica do que pelo grande público. No entanto, não há como negar seu papel como mentora intelectual de jovens artistas e escritores do início do século XX, como Pablo Picasso, Henri Matisse, Guillaume Apolinnaire e Ernest Hemingway.
Com o livro "Duas Vidas: Gertrude e Alice", a jornalista tcheca Janet Malcom nos permite ir além dos escritos de Stein, para conhecer mais sobre sua vida, sua personalidade e sua relação com a companheira de décadas, Alice B. Toklas (1877-1967).
Dividido em três partes, o livro é uma reunião de ensaios originalmente publicados na revista The New Yorker. Com seu estilo ácido de escrever, Janet Malcom parte de um questionamento: "Como um casal de judias lésbicas e idosas conseguiu sobreviver às perseguições nazistas na França, permanecendo incólume durante toda a Segunda Guerra?"
A partir daí, por meio de pesquisas e entrevistas com biógrafos, amigos e especialistas na obra de Gertrude Stein, monta o quebra-cabeça do que seria a personalidade da escritora, que se autodenominava “um gênio”.
Filha de um rico imigrante judeu-alemão, era a caçula de cinco irmãos e perdeu a mãe aos 14 anos. Poucos anos mais tarde, com a morte do pai, o irmão mais velho, Michael, assumiu os negócios da família e Gertrude passou a viver de renda. Em 1903, parte com o irmão Leo para Paris e com ele começa a se interessar  e colecionar obras de arte moderna.
Teria início aí a lenda da casa da Rue Fleurs, 27, que virou ponto de encontro de artistas e intelectuais, muitos deles, expatriados americanos, que ela chamava “the lost generation”.  A recusa do irmão em reconhecer sua genialidade, fez com que os dois se afastassem para sempre. Quando Leo foi embora, Alice já havia entrado na vida de Gertrude.
Era um casal estranho. Em suas memórias, Mabel Rodge revela que "Gertrude era prodigiosa, quilos e quilos e quilos empilhavam-se em seu esqueleto". Quanto a Alice, "era franzina e morena, com lindos olhos cinzentos pesados.” A maioria dos amigos considerava Gertrude fascinante e charmosa, enquanto Alice era feia e apagada.
Em suas pesquisas, Janet descobre uma Gertrude acostumada a “ser cuidada por pessoas que sentiam-se incapazes de agir de outro modo. E a maior de todas as abelhas operárias era Alice Toklas”. Na relação desigual que mantinham, Gertrude se ocupava de sua genialidade e Alice, dos afazeres domésticos. Enquanto Stein deixava escorrer seus textos para o papel, era a companheira quem os revisava e datilografava. Diferenças à parte, é certo que as duas nutriam uma grande afeição mútua.
Um dado explorado no livro é a amizade de Stein por Faÿ Bernard, um professor colaboracionista nazista, mais tarde condenado à prisão perpétua por envolvimento na prisão, deportação ou morte de milhares de maçons durante a ocupação da França pelos alemães. Bernard foi fundamental para garantir a permanência das duas judias em Paris, sem serem importunadas. Ao que parece, elas não tinham ideia da gravidade das ações do amigo.
Se o retrato do artista se faz pela sua obra, em "Duas Vidas" Janet também se ocupa de analisar a escrita de Gertrude Stein. Para isso, consulta especialistas, como Edward Burns, William Rice e Ulla Dydo. Por sugestão destes, debruça-se sobre um de seus mais famosos livros, "The Making of Americans", um romance gigantesco de 925 páginas, que mesmo alguns amigos de Stein não conseguiram ler. Malcom o define como um livro “estranhíssimo” o qual, à medida que avança, “parece-se menos com um romance e cada vez mais com um pântano onde escritora e leitor se afundam”.
Os textos experimentais de Stein eram considerados densos demais, o que dificultava o interesse das editoras. Segundo Malcom, “ela não sabia inventar” e "escrevia quase que somente de suas próprias experiências". A aceitação pelo grande público só aconteceria aos 51 anos, com a publicação de "Autobiografia de Alice B. Toklas", que escreveu dando voz à sua companheira.
Com a morte de Gertrude de câncer, em 1946, Alice “cuidou do santuario da lenda literária e pessoal de Stein com a devoção de um cachorro à sepultura de seu dono”. "A lembrança de Gertrude é toda minha vida" escreveu ela a Donald Gallup, em 1947.
"Duas Vidas: Gertrude e Alice" apresenta um texto instigante, fruto de  um jornalismo investigativo da mais alta qualidade. Aos fãs de Gertrude Stein, deve ter incomodado bastante. Mas, para quem conhece pouco sobre sua vida e obra, desperta ainda mais a curiosidade de lê-la e (tentar) compreendê-la.

"Duas Vidas: Gertrude e Alice" - Janet Malcom.
Editora Paz e Terra.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Livro 55: Quando o espiritual domina (Simone de Beauvoir)

Uma das maiores feministas do século passado, Simone de Beauvoir teve uma existência sui generis numa época em que cabia à mulher apenas as funções de mãe e dona de casa. Criou um jeito próprio de viver. Um de seus livros mais famosos , O Segundo Sexo (1949) , traz a frase que a celebrizou, servindo de bandeira para o feminismo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Para ela, a mulher não tem um destino biológico, forma-se  dentro de uma cultura que define seu papel na sociedade. Nascida em uma família da alta burguesia francesa, Simone, mais velha de duas irmãs, teve acesso a uma formação intelectual melhor do que muitas mulheres de sua época, o que não evitou que ela trouxesse resquícios de sua criação burguesa, a qual critica em “Memórias de uma moça bem comportada”.



Com Jean Paul Sartre, ela formou um dos casais mais instigantes do século e do meio intelectual. Não se sabe se o que os unia era admiração ou amor, mas certamente, entre inúmeros casos de ambos os lados, foram fiéis à ligação que os unia – sem morarem na mesma casa - até a morte dele, em 1980.
No final da vida Simone de Beauvoir permitiu que fosse publicado este conjunto de cinco novelas que se interligam, formando um romance em que as personagens – mulheres – se encontram em situações de crise, impedidas de exercerem sua personalidade devido ao meio preconceituoso e repressivo em que vivem.Escrito entre 1935 e 1937 esse conjunto de novelas foi engavetado por Beauvoir após serem recusadas pelo seu editor, Gallimard. São as histórias de cinco moças, Marcelle, Chantal, Lisa, Marguerite e Anne, através das quais a própria Simone lança questionamentos sobre moral, espiritualidade, vida e morte.
Marcelle é uma moça sonhadora e sensível que devora contos de Schmidt, romances e memórias históricas.  Ansiava por tornar-se adulta e virar uma escritora famosa. “Nunca seria igual àquelas moças frívolas. Queria ser uma mulher de talento.”  - "Há mais de uma mulher em mim – disse” (p.23:24)Mas na época da Guerra em meio ao sofrimento presenciado, começa a duvidar da existência de Deus. Entra para um movimento social, movida pelo seu idealismo, mas logo se desilude, deixa um namorado para casar-se com um jovem de futuro desalentado. O casamento definhará quando ela perceber que se dedica mais do que ele, que um dia comenta: “Não sou feito para a vida de família.” Marcelle chegará a uma conclusão: ““(...) a verdade é esta: quero gigantes e há apenas homens”. (p.27)
Na segunda novela, Simone apresenta a história de Chantal. Num diário “cor de ameixa”, ela expõe suas impressões sobre a vida. “É quase um sacrilégio alterar o branco virginal dessas páginas.” Chantal é uma jovem professora que vai lecionar num colégio para moças em Rougemont. Orgulha-se de sua nova vida e parece viver em êxtase. Passeando pelo Liceu, sentia “a impressão de andar por um romance de Balzac.”
Chantal é admirada pelas alunas e se considera superior às outras professoras mais velhas e conservadoras.  “São todas solteironas sem sensibilidade, orgulhosas da inútil e pesada cultura que possuem, nunca olharam de frente o verdadeiro rosto da vida”. (p.57)
“Quando chego ao liceu, toda penteada e bem pintada e com uma blusa de tom ruivo de certos crisântemos, sinto fizar-me em mim o olhar cheio de reprovação de minhas colegas e ao olharem pouco maravilhado das alunas, que devem achar-me muito irreal. Adoro descer as escadas correndo, sob o olhar escandalizá-lo das inspetoras”(p.57).
Mas quando uma de suas alunas fica grávida do namorado, Chantal sente-se traída e horrorizada, se nega a apoiá-la, aconselhando um casamento rápido, contestando sua aparente “modernidade”.
Seguem-se as histórias de Lisa, Anne e Marguerite, personagem com a qual Simone declarou se identificar mais. Seria um autorretrato?

Seja qual for a moça retratada, a impressão que se tem é que por meio da história de cada uma, Simone expõe suas opiniões sobre as questões mais prementes do universo feminino da época. É como se todas as moças formassem um quebra-cabeça que comporiam a personalidade da autora, especialmente em seus jovens anos. Como ela mesma define, é uma catarse e ao mesmo tempo uma obra ainda relativamente imatura. Eu particularmente senti que Chantal se parece mais com Simone, dada a grande influência que ela teve entre suas jovens discípulas, algumas das quais chegou a acolher e adotar. Também existe um leve egocentrismo no texto, que é peculiar da autora. Contudo, continua sendo uma obra importante para se conhecer o pensamento de Simone de Beauvoir.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Livro 54: Titília e o Demonão (Paulo Rezzutti)


Uma das personalidades mais marcantes e controversas da história do Brasil, Dom Pedro I , Imperador do Brasil tem inúmeras facetas. Ora glorificado pelo ato de heroísmo ao libertar o país de Portugal, no famoso Grito do Ipiranga, quanto criticado por seu apetite insaciável por qualquer rabo de saia, resultando em vários filhos fora do casamento com a Imperatriz Leopoldina.
Mas um dos capítulos mais comentados da história de sua curta vida é o que narra seu caso amoroso com Domitila de Castro, a Marquesa de Santos.
Um dos mais conturbados triângulos amorosos de que se tem notícia em terras tupiniquins ganha novas luzes com o livro Titília e o Demonão – Cartas Inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos, escrito por Paulo Rezzuti e publicado pela Geração Editorial. Nele o autor acrescenta aos já conhecidos relatos do tórrido affair, mais 94 cartas íntimas do Imperador destinadas à sua mais famosa amante. Descobertas pelo pesquisador em um museu dos Estados Unidos, essas missivas apimentam ainda mais as histórias sobre a avassaladora paixão que balançou as estruturas da Corte no Brasil e fez história dentro da História do país.
Transcritas e corrigidas levemente em sua grafia e pontuação, de forma a facilitar a compreensão, as cartas não são datadas, mas foram dispostas de acordo com os fatos cronológicos, graças a uma cuidadosa pesquisa do autor. Por meio delas, descobrimos não apenas o amante, por vezes apaixonado e suplicante, mas também um pai desvelado dos filhos que teve, tanto com a esposa - a Imperatriz Leopoldina, quanto com Domitila. Há nas mensagens, pinceladas sobre acontecimentos da época, citações sobre personagens importantes da cena imperial, bem como a exposição de preocupações do Imperador com os rumos daquela que ele chama de “nossa Pátria”.
Em certas cartas e bilhetes contidos no livro, nada sugere que seu portador seja tão célebre figura, mas sim, um homem comum, preocupado com a saúde da amada e dos filhos: “Desejo, pelo muito que me interesso pela sua saúde, (que) me mande dizer como passou do seu incômodo da cabeça, e juntamente como passou nossa Belinha, que de mecê será inseparável até ter idade de aprender, e mecê querer.” (Carta 9)

“Manda-me dizer como passaste o resto da noite e se não te fez mal o frio do chão nos pés.” (Carta 57)
Em outras, busca acalmar os ânimos da amante ciumenta:  “Se o amor que temos um ao outro é verdadeiro, devemos perdoar suspeitas mal fundadas ou, por outra, ciúmes vagos sem fundamento” (Carta 38)
Em algumas missivas, assinadas como “O Demonão”, “O Imperador” ou mesmo “O anônimo”, Dom Pedro elabora artimanhas para que possam se encontrar, o que se mostra irrelevante, já que o caso, que durou sete anos, nunca foi mantido em segredo, a ponto de o Imperador ter trazido Domitila (e vários membros de sua família) para morar na Corte e tê-la nomeado dama de companhia da Imperatriz: “Manda, filha, fazer a porta, e até ela ficar pronta irei entrando pelo portão de costume, por onde hei de visitar hoje às dez horas querendo tu, o que espero, pois não quererás dar cabo deste teu filho com mais essa provação de me proibir lá ir” (Carta 66).

“Até à noite, que conversaremos, e nos apalparemos por dentro e por fora” (Carta 23).
Embora de conteúdo quase sempre romântico, não faltam nas mensagens citações à Pátria que Dom Pedro escolheu como sua: “Sonhei alguns sonhos que me mortificaram, todos relativos a nossa Pátria, à qual desejamos sumas venturas”.
As 94 cartas de Pedro para Domitila, além de outras escritas por esta para o amante expõem também detalhes prosaicos como troca de presentes, frutas e flores. Relatos sobre a saúde de um ou de outro ou briguinhas comuns de um casal incomum.
O Imperador
Ao contrário do que se possa imaginar, “Titila e o Demonão” não serve de material para quem deseja apenas bisbilhotar detalhes picantes sobre um casal de celebridades (tão em voga neste início de século). Mas é enriquecido de informações relevantes, apresentadas pelo autor no texto introdutório e em notas ao pé da página, que elucidam fatos e nomeiam personagens citados nas missivas, para que possamos entender melhor seu conteúdo. 


O Imperador teve com Domitila cinco filhos, dos quais apenas duas meninas sobreviveram. A primeira, Belinha foi criada na Europa e agraciada com o título de Duquesa de Goiás. A outra menina, Maria Isabel II, nasceu em São Paulo em 1830, quando já estavam separados. O Imperador e Domitila também tiveram um filho chamado Pedro, que nasceu poucos dias após o oficial, Pedro II. O menino faleceu antes de completar um ano de idade.
Após a morte da Imperatriz Leopoldina, Dom Pedro solicitou que encontrassem para ele uma esposa na corte europeia. E para conter os comentários sobre sua fama de conquistador, achou por bem afastar Titília da Corte no Brasil. Ordem acatada por esta, muito a contragosto.
Em maio de 1829, o Imperador despediu-se de Titilia:
“Eu te amo; mas mais amo a minha reputação agora também estabelecida na Europa inteira pelo procedimento regular. [...] Tu não hás de querer a minha ruína nem a ruína de teu e meu País e, assim, visto isto além das mais razões me faz novamente protestar-te o meu amor; mas ao mesmo tempo dizer-te que não posso lá ir”.
Domitila retornou a São Paulo, com a quantia de 300 contos de réis em apólices, além da garantia de um conto de réis mensal.
Em carta ela despede-se do ilustre amante:
“Eu parto esta madrugada e seja-me permitido ainda esta vez beijar as mãos de V. Majestade por meio desta, já que os meus infortúnios, e a minha má estrela, me roubaram o prazer de fazer pessoalmente. Pedirei constantemente ao céu que prospere e faça venturoso ao meu Imperador enquanto a Marquesa de Santos, Senhor, pede por último a V. M. que, esquecendo como ela tantos desgostos, se lembre só mesmo, a despeito das intrigas, que ela em qualquer parte que esteja saberá conservar dignamente o lugar a que V. M. a elevou assim como ela só se lembrará do muito que deve a V. M. Que Deus vigie e proteja como todos precisamos.”
(Marquesa de Santos)


Pedro faleceu aos 36 anos em 1834. Domitila sobreviveu a ele em 33 anos. Foi sepultada em 1865, em São Paulo, no Cemitério da Consolação, cujas terras ela doara à cidade.  E o affair entre ela e o Imperador foi imortalizado como o mais famoso romance da história do nosso País.Dom Pedro I casou-se com a duquesa austríaca Amélia de Beauharnais, duquesa de Leuchtenberg, pertencente aos Habsburgos, uma das dinastias mais importantes da Europa. Com o tempo, o caso com Domitila esfriou e pouco depois ela se casou com o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, com quem teve mais quatro filhos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Livro 53: Livro Sobre Nada (Manoel de Barros)

Para se ler um poema de Manoel de Barros é preciso respirar fundo, pausar pra refletir, saborear as palavras, repetir os versos, reconhecendo-os, percebendo seu cheiro, textura, cor. Transmutar verbos, refazer a lógica, dar novo nome às coisas, aos sentimentos.  O que se presume ao ler um de seus poemas é que ele não apenas escreve: ele vive a poesia.
Buscando escrever feito menino, o autor acaba fazendo versos grandiosos, eloquentes na simplicidade. Para ele, cada pequeno detalhe de um lugar desimportante é uma preciosidade, é material para verso. Nada se desperdiça. Uma nuvem que nasce vira poema, um besouro na areia, um andarilho, as moscas. O papel no chão. Enfim, o nada.
E o nada é matéria-prima deste livro, publicado em 1996 pela Editora Record.
Obra mais famosa do autor, "Livro Sobre Nada" conquistou o Prêmio Biblioteca Nacional no ano de 1997.
Trata-se de um livro de poesia e prosa. Mas pode ser poesia em forma de prosa. Ou mesmo um livro de fragmentos e aforismos. Ao que parece, defini-lo não é preocupação do autor.O que ele quer mesmo é fazer "coisas desúteis", versos sobre o não existir, poemas sobre miudezas, 
Segundo ele, a inspiração para esse livro veio de uma frase de Flaubert, em uma carta a uma amiga em 1852. Dizia este  que gostaria de fazer um livro sobre nada. 
“Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustenta só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo.”  
O leitor perguntaria como se traduz o nada, é tangível, palpável. Seria o  desimportante, o vazio, o não ser, o não estar? Manoel dá o mapa da mina. “É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo.”
Dividido em quatro partes, "Arte de infantilizar formigas", "Desejar ser", "O livro sobre nada" e "Os Outros: o melhor de mim sou Eles", nesta obra tudo é matéria de poesia: a caduquice do vô, a inocência da irmã, o mascate que traz mercadoria pra vender na cidade, os andarilhos, um pintor boliviano.
Folheá-lo é encontrar preciosidades como “Meu avô ampliava a solidão.” "Com pedaços de mim eu monto um ser atônito" ou "Pensar que a gente cessa é íngreme - minha alegria fica sem voz". 
Tão pueril quanto grandiosa, a escrita de Barros faz com que cores tenham cheiro e palavras ganhem forma. Ele não inventa só sentidos, reinventa o existir, quando traduz em versos o raciocínio de um menino. "Em menino eu sonhava ter a perna mais curta (só pra poder andar torto)". Tudo em sua poesia remete a uma volta para trás, ele vê graça na inocência, no que não foi anda definido, corrompido. O que ele busca, segundo ele mesmo, é um criançamento da vida.
O que o leitor irá perceber ao folhear esta obra é que se  Manoel de Barros quis fazer um Livro Sobre Nada, cheio de desimportâncias, vazios, miudezas, coisas desúteis, no final o que ele acabou fazendo foi um livro cheio de tudo.

“Meu avô abastecia o abandono.”


"Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber".

"As palavras me escondem sem cuidado.

“Com pedaços de mim eu monto um ser atônito”

“No fim da tarde nossa mãe aparecia nos fundos do quintal. Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro.”

"O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito".


Manoel de Barros, poeta e fazendeiro mato-grossense, nasceu em 1916 e teve seu primeiro livro publicado em 1937 - Poemas concebidos sem pecado.

Quando li: 1997
Como adquiri: presente do meu marido.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Livro 52: Do amor e outros demônios (Gabriel García Márquez)


Do Amor e Outros Demônios traz todos os ingredientes que compõem uma história de Gabriel Garcia Márquez. Sim, baseia-se em um acontecimento por ele vivenciado. Sim, utiliza elementos da mitologia popular. Sim, encerra uma crítica à intolerância religiosa.  E sim, mistura amor e sofrimento, como se ambos fossem sentimentos indissociáveis.

 O livro tem inspiração em seus tempos de repórter em 1949, quando, ao cobrir a remoção das criptas funerárias de um Convento, depara-se com uma ossada com cabelos cor de cobre de aproximadamente 22 metros. Recorda-se da lenda contada por sua avó sobre uma marquesinha do Caribe, de longa cabeleira, que morrera mordida por um cão. Anos depois, o Gabo recria a história da menina, brindando-nos com uma dolorosa narrativa sobre o amor – e seus demônios.

Nesta obra publicada pela Editora Record, em 1995, ele narra a história de Síerva Maria Todos los Angeles, que vivera na Colômbia do Século XVIII, filha do Marquês de Casalduero e da segunda esposa, Bernarda Cabrera. Esse estranho casal, cujo enlace não dera alegria a nenhum dos cônjuges, teve uma única filha, concebida sem amor e criada na indiferença. Rejeitada pelos pais desde o nascimento - sua mãe a odiara na única vez em que a amamentara - , Síerva Maria era criada entre os escravos da casa. Recebeu o nome de Maria Mandinga e foi iniciada na religião africana, aprendendo com eles rituais e o idioma ioruba.Com seus colares de contas de orixás e uma longa cabeleira ruiva que lhe pendia aos pés “como um vestido de noiva”, a menina não parecia ser deste mundo.
Quando, aos 12 anos,  foi mordida por um cão com suspeita de raiva, espalhou-se a notícia, segundo a crendice da época, de que acabaria possuída por demônios. O pai, com remorsos, cai de amores pela menina, que recebe a aproximação com desconfiança. Procurando ajuda na ciência e no curandeirismo para salvar a filha, ele chega à casa do médico mais famoso da região, Abrenúncio de Sá Pereira Cão (personagem dos mais instigantes da obra). Ateu convicto de alma generosa, o médico afirma que Sierva Maria não tinha sintomas de raiva, mas sim, de falta de amor. Note-se aí a comparação sugerida pelo autor entre raiva- doença e a raiva- sentimento, da mesma forma como ele irá associar mais adiante sinais da possessão demoníaca a sintomas da paixão.
Quando Síerva Maria é encaminhada ao Convento de Santa Clara para ser tratada por “obreiros” de Deus, o livro ganha tons mais sombrios, expondo-se o fanatismo e as arbitrariedades da Igreja na forma com que a menina é (mal) acolhida no lugar que deveria salvá-la. Consideram estranhos seus hábitos, seus colares africanos e sua força incomum, atribuindo a estes um sinal do demônio – tem se medo daquilo que se desconhece.
 Encerrada numa cela escura sem contato com o mundo, a menina é banhada com água benta e esfregada até aumentar as feridas. Logo sua cela estará coberta de excrementos e seus cabelos, de piolhos. Como profetizara Abrenúncio, o abandono e os maus tratos é que acabariam por torná-la irrecuperável.
É quando sua história se cruza com a do jovem Padre Cayetano Delaura, homem de confiança do Bispo. Enviado para investigar o caso, em suas primeiras visitas ele se vê diante de uma menina enfurecida, vociferando em idioma desconhecido. Relata então ao Bispo que aquilo era - "o demônio, meu pai, o mais terrível de todos". 

Em pouco tempo, porém, estará apaixonado pela menina, tudo fazendo para tentar salvá-la. 
Será este o verdadeiro demônio que ele irá enfrentar. Os demônios que habitavam Sierva Maria e alcançaram o Padre Delaura tinham um nome: amor.

 "Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, 
como diziam as canções, que o amor tudo podia.
 - É verdade - respondeu ele -, mas é melhor não acreditares." [p. 75]

 “Como estamos longe! - suspirou ele.
- De quê?
- De nós mesmos." [p. 142

Gabriel Garcia Márquez
Do Amor e Outros Demônios
Record
Tradução: Moacir Werneck de Castro
1995

Quando adquiri: comprei por volta de 1998
Quando li: em 1998 e novamente em 2013

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Livro 51: Ressurreição (Machado de Assis)

"Ressurreição", primeiro romance de Machado de Assis, publicado em 1872 (antes havia publicado apenas poemas), já traz muitas das características que o consagraram como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. As famosas frases machadianas que fazem até hoje o deleite de seus admiradores. Ricas descrições de personagens e um peculiar senso de humor, além da capacidade de retratar como ninguém o Rio de Janeiro dos tempos do Império.
Já nessa época o  jovem Machado escreve com uma maturidade difícil de encontrar em iniciantes e com um estilo pessoal que o consagraria, herança dos escritores franceses que tanto admirava. Sua narrativa é fluida, qual uma conversa com o interlocutor, prendendo -lhe a atenção não apenas pela história mas pela forma com que a conta.Suas palavras parecem milimetricamente arranjadas para formar um parágrafo onde tudo está no lugar certo, sem falta ou excesso.
No prefácio, o autor prepara o leitor para o que encontrará: "Não quis fazer romance de costumes, tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caráteres. Com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela. É o que lhe peço com o coração na mão".


A história? Bem, a história é das mais simples, sem grandes arroubos, apenas a intrincada rede de sentimentos que pode existir em um círculo pequeno de pessoas em torno de um casal, Lívia e Félix, que Machado pretende opostos.

Ele, um médico jovem, solteirão convicto, que à altura da historia não precisa exercer a profissão para viver, devido a uma herança inesperada. (Quantos personagens de Machado são exatamente assim, vivem de renda e usufruem dos prazeres da riqueza e da corte?)
Ela, viúva de 24 anos, bela, generosa, alegre e cheia de vida, vive para o filho, um menino de quatro anos.
Logo fica marcada uma oposição entre a personalidade de ambos. Enquanto ela é aberta e expansiva, sem medo de se envolver, ele fala de si como alguém que perdeu a ilusão e, por isso não se deixa arrebatar por amores ou paixões. Acredita ele que pode controlar o tempo e a intensidade do que sente.
Como ele mesmo se define: " O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas."
De apurada elegância, Félix traz "um olhar ordinário frio e não por vezes morto."
Quem irá fazer reviver esse olhar, melhor dizendo, ressuscitá-lo?
Quem apresenta Lívia a Félix é Viana, um rapaz que o bajulava e tratava, como se fossem velhos amigos:  "Um desses homens metediços e dobradiços que vão a toda parte e conhecem todas as pessoas (...)" "Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino."
( Por certo todos nós conhecemos alguém assim.)


Embora não acreditasse mais no amor, Felix se envolverá com a moça, a principio por capricho, até que se apaixona verdadeiramente.  "É certo que me ressuscitaste  continuou o médico. E se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei , minha boa Lívia. Só tu haverás feito o milagre."

"O desenlace sesta situação desigual entre um homem frio e uma mulher apaixonada parece que deverá ser a queda da mulher. Foi a queda do homem. Para triunfar da viúva Félix contava apenas com uma resolução; mas a viúva  além de seu amor, tinha dois auxiliares ativos latentes: o tempo e o hábito".
"Mas o amor da viúva era um verdadeiro combate. quando Felix chegou a encarar-lhe o coração. sentiu a fascinação do abismo, e caiu nele." 
Enquanto a trama acontece, com outros personagens circulando em torno do casal, o autor descreve a vida e os costumes da sociedade carioca dos tempos do Império.
Apaixonados, Félix e Lívia decidem manter o romance em segredo até vésperas do casamento, sendo esse silêncio a causa de alguns desentendimentos, quando Raquel, jovem amiga de Lívia presume estar a mesma envolvida com Menezes, amigo da casa e o confidencia a Félix. Quando o mal entendido é desfeito,  a semente do ciúme já estará plantada; a dúvida e a insegurança atormentam Félix, e o amor despertado em seu coração talvez não seja forte o suficiente para sobreviver a sua imaturidade. Um novo episódio será o golpe de misericórdia para o perturbado coração do rapaz.

Embora "Ressurreição" seja seu primeiro romance e a situação engendrada não seja tão bem articulada a ponto de ser uma grande obra, o livro já traz a marca do bruxo do Cosme Velho.
Machado de Assis retomará várias vezes em sua obra a mesma fórmula, fazendo antagonismo entre mulheres fortes e homens frágeis e ciumentos, como em seu maior sucesso, Dom Casmurro.
Mais do que isso: o fará cada vez melhor.


Ressurreição
Machado de Assis
Coleção Saraiva

Quando li: 2010
Como adquiri: em sebo, buscando cumprir o desafio de ler todos os romances de Machado de Assis.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Livro 50: Negócio Fracassado e Outras Histórias de Humor (Anton Tcheckhov)


Considerado o mais atemporal e universal autor da terra de Tchaikovsky, Anton Tchékhov inseriu seu nome entre os maiores da literatura mundial de todos os tempos. E o fez de forma desassombrada, até mesmo modesta. A julgar pelos seus textos escrever, para ele, era tão natural e necessário quanto respirar.

Filho de família pobre, começou a vida adulta como médico – por sinal, muito caridoso e solidário – e logo foi arrebatado pelo talento literário. Durante muito tempo, atendia durante o dia e escrevia à noite. Logo, estaria vivendo de literatura e, juntamente com Dostoiévski, Tolstoi e Gogol , mudou a forma de contar histórias na Rússia da época.
Com sua escrita sincera e afiada, Tchékhov passeava com naturalidade entre os contos e as peças teatrais, destacando-se nos dois gêneros. Fazendo da miséria humana seu principal tema, interpretou como ninguém os sentimentos dos menos favorecidos, descrevendo situações familiares a qualquer pessoa. Seja na Rússia do século XIX ou no Brasil dos dias de hoje.
Brilhante contador de histórias, seu texto era direto, conciso e sem grandes rebuscamentos. Dizia que “quanto mais objetivo, tanto mais forte” e que “a concisão é irmã do talento”.
O livro “Negócio Fracassado e Outros Contos de Humor” é uma boa amostra do tão decantado estilo Tchekhoviano. São 38 contos que formam uma paisagem viva da Rússia da época (1882 a 1887). A cada conto, desfilam personagens variados com histórias tão comoventes quanto hilárias. Merecem sua narrativa os amores não (ou mal) correspondidos, o desejo de ascensão social, a lentidão do serviço público, a corrupção, o casamento por interesse, a ganância, a mediocridade desesperada,  a espantosa idiotia humana.

Em “Uma história terrível” um homem ao chegar em casa, se depara com um caixão “para uma pessoa de estatura mediana" que "a julgar pela cor, destinava-se a uma moça jovem” Além do pavor que a visão desperta, surge um diálogo interior e um duelo com o próprio pânico que ele dividirá com o leitor. “Não me espantaria se o teto tivesse caído, o chão tivesse afundado ou as paredes tivessem desmoronado. Mas como poderia ter surgido no meu quarto um caixão?” Cabe a nós acompanhá-lo nessa divagação.

Em “A Veranista”, Liôlia, "uma loura bonitinha de vinte anos" compara seu passado de estudante com a vida ao lado do  marido "bonito, jovem e formado, respeitado por todos, porém tosco, não lapidado e absurdo como quarenta mil de seus semelhantes, igualmente absurdos”. "Sobre o que ele pensa, Liôlia não consegue saber. O que ela sabe é que, depois de pensar durante duas horas, ele não fica nem um pouquinho mais inteligente e continua a dizer disparates".

Em “A Visita”, acompanhamos o desespero de Zeltérski, que vê a madrugada adentrar sem que sua visita se dê conta de que é hora de partir. “Desde que chegara, logo após o almoço, ele se sentara no divã e não havia se levantado nem uma vez, como se estivesse grudado ali.” Ele tentará de tudo para conseguir seu intento, enquanto a visita indesejável ali permanecerá, impassível. É provável que você tenha ficado curioso em saber o fim dessa e das outras histórias. Fique à vontade, porque a leitura vale a pena.


Viveu pouco, Tchékhov, morreu aos 44 anos e nunca acreditou muito no próprio talento. Achava que após sua morte, em sete anos, ninguém mais se lembraria dele. 150 anos depois, é reverenciado por sua contribuição à literatura mundial e nunca se falou tanto em sua obra. Nem em um conto de sua autoria, ele teria imaginado um desfecho igual.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Livro 49: Faz escuro mas eu canto (Thiago de Mello)


O que leva uma pessoa, numa tarde qualquer,  a escolher ao acaso um pequeno livro em uma estante, um livro nunca dantes folheado, um pequeno livro de apenas 89 páginas?  Impulso, acaso, despretensão? Esse livro habitou a minha estante por tantos anos, faz parte da coleção de meu marido e eu –  amante confessa de Bandeira e Drummond nunca havia sequer prestado atenção em Thiago.
E foi num acesso de despretensão, meio blasé que comecei a folhear  "Faz escuro mas eu canto", de Thiago de Mello, publicado pela primeira vez em 1965 e já traduzido para mais de 30 idiomas.

Pausa. À medida em que lia os poemas, mal pude respirar, emendando um no outro, com a descoberta de que alguém ali falava coisas preciosas, com precisão e com necessidade. 
 De um fôlego só, fui sorvendo as palavras desse poeta operário, um artesão da palavra que escreve coisas simples e grandiosas ou coisas simplesmente grandiosas.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Livro 48: A Confissão (Reinaldo Santos Neves)

Um pequeno livro com uma bela história. Com apenas 68 páginas, “Confissão”, do escritor capixaba Reinaldo Santos Neves, parece ter sido escrito sob uma névoa de recordações guardadas com carinho na memória do autor e que ele despeja em forma de um texto bordado com a ternura da infância, da inocência e do sonho. Ao narrar um curto espaço de vida de Dimas, menino de oito para nove anos, sua voz se confunde, ora com a de um adulto, ora a do próprio menino, de calças curtas, tentando revisitar a casa de sua infância, as imagens ternas dos pais – ele, professor do colégio do Carmo e ela, dona de casa – a professora de francês, os colegas de escola.
“Vitória era uma ilhota naquele tempo: dali do pátio, apoiado à muret , dava pra ver os altos e baixos do casario, as mangueiras, nos quintais, o vulto abespinhado da catedral a Cidade Alta; o busto pétreo do Penedo ao fundo, tostando ao sol de 58”.
Como o próprio nome do livro sugere, a religiosidade está presente na infância do menino, que no entanto a encara com leveza, de forma quase lúdica. "Dever da escola era decorar as orações da Igreja." Diga-se, de passagem, que Vitória, no Espírito Santo, onde se passa a história,  é chamada ainda hoje de Cidade Presépio. E nos idos dos anos 50, tudo nela remetia a um badalar de sinos: o tamanho, a arquitetura, a singeleza.
Começa o livro com a família se preparando para a missa, que os pais preferiam assistir às oito, na Capela do Carmo, quando toda a vizinhança ia às sete, na Catedral. O menino Dimas se incomoda de ser diferente e olhado pelos amigos “como um judeu – ou pagão”.  E não adianta a mãe explicar que eles iam à missa no Carmo por que o pai era professor do colégio.
Lembra que seu pai costuma assistir a missa de pé, talvez para evitar o senta e levanta comandado pelo padre. Durante a missa, seu pensamento voa, lembrando de Cecília Marmorosa, a professora que deixava os alunos em polvorosa.  Pensa no pai, que é religioso ao seu modo, misturando fé com crença popular: Santa Luzia, para tirar cisco do olho; São Braz para ajudar no acesso de tosse:
“Sombrás, Sombrás!” E para os dias de chuva," Santa Clara, clareai!"

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Livro 47: Cartas Portuguesas (Mariana Alcoforado)


Mariana Alcoforado nasceu em Beja, Portugal, em 1640 e entrou para o Convento de Nossa Senhora da Conceição, da Ordem de Santa Clara aos 12 anos de idade. Em 1663 teria conhecido o oficial francês Marquês De Chammily, que servia em Portugal durante as Guerras da Restauração. Seduzida e abandonada por ele, quando o jovem parte para seu país, ela começa a enviar cartas apaixonadas, falando de seus sentimentos. 
O livro Cartas Portuguesas  foi publicado pela primeira vez em 1669, na França, tendo a autoria anônima . Compõe-se de cinco cartas nas quais uma jovem que assina Mariana declara-se ao amado. 
Na primeira edição é assim que autor apresenta o livro: 
"Consegui, à custa de muitos trabalhos e dificuldades recuperar uma cópia correta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um nobre e gentil homem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os sentimentos do coração humano são unânimes ou em louvá-las ou em procura-las com tanto empenho que julguei prestar-lhes um bom serviço imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele que as traduziu; mas pareceu-me que não cairia no seu desagrado publicando-as. É difícil que não acabassem por aparecer com erros de impressão que as teriam desfigurado.”
Por meio da correspondência, percebe-se que se trata de uma freira que, desconhecendo o mundo externo, envolve-se com um oficial e que o sentimento por ela expresso não é retribuído da mesma forma.