domingo, 31 de março de 2013

Livro 90: O Cortiço (Aluízio Azevedo)

Lançado, em 1890, "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, é considerado o melhor representante do movimento naturalista na literatura brasileira. Denunciando as mazelas sociais e fugindo da visão fantasiosa da vida, presente no romantismo, desenha um amplo painel da sociedade do Rio de Janeiro do fim de século XIX, retratando, através de seus personagens, a ideologia e as relações sociais presentes no país.
Narrado em terceira pessoa, são 23 capítulos, nos quais o autor relata a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres, conhecido como “cortiço” na cidade do Rio de Janeiro. Um espaço onde impera a promiscuidade sexual e moral, decorrente, segundo o narrador, da mistura de raças.
Além na animalização dos personagens e a ação baseada em instintos de sobrevivência e sexuais, outra caraterística naturalista da obra é que nela o espaço físico (no caso, o Cortiço) é tão forte quanto os próprios personagens. Percebe-se que em vários trechos o autor compara a construção a um organismo vivo, que cresce e se desenvolve: “os olhos do cortiço se abrem”.
Outra forte característica naturalista são os personagens trabalhadores, pessoas comuns, que lutam pelo seu ganha-pão: lavadeira, ferreiro, operário – um reflexo das transformações pelas quais passava o país na época, com o fim da escravidão (1888) e a decadência da economia açucareira. 
A história se divide entre dois ambientes principais - o cortiço, de propriedade de João Romão (que representa a mistura de raças e a promiscuidade das classes mais baixas) e o sobrado aristocrática do Barão Miranda ( figura que representa a elite brasileira). Localizando-se lado a lado, os dois espaços representam as classes socioeconômicas e a desigualdade social existente no país.
Assim como os espaços que ocupam e que delimitam a trama, os personagens João Romão e Miranda representam as duas classes oponentes. No romance e no país. Paralelamente no cortiço estão os moradores de menor ambição financeira, como Rita Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e Piedade. 
Além de apresentar os mais diversos conflitos: interracial, escravidão x trabalho livre, brasileiros x portugueses, o romance  também denuncia a exploração do homem pelo próprio homem, expondo situações e relações de poder dentro de uma habitação coletiva.
A história começa narrando a saga de João Romão rumo ao enriquecimento. Proprietário do cortiço, da taverna e da pedreira para acumular capital, ele explora os empregados e se utiliza até dos meios mais ilícitos para atingir seus objetivos.
Em oposição a João Romão, surge Miranda, o comerciante bem estabelecido que cria uma disputa acirrada com o taverneiro por uma braça de terra que deseja comprar para aumentar seu quintal. Não havendo consenso, ocorre o rompimento de relações entre os dois. Com inveja de Miranda que possui condição social superior a ele, boa parte da trama mostra a luta de João Romão para enriquecer mais que seu oponente, trabalhando arduamente e passando por privações.
Quando Miranda recebe o título de barão, João Romão entende que não basta ganhar dinheiro, é necessário também ter uma conduta refinada e frequentar ambientes requintados. Promove então mudanças na estalagem, que agora ostenta ares aristocráticos. O cortiço todo também muda, perdendo o caráter desorganizado e miserável para se transformar na Vila João Romão.

João Romão aproxima-se da família de Miranda e pede a mão da filha do comerciante em casamento. Há, no entanto, o empecilho representado por Bertoleza, sua amante, que, percebendo que Romão quer se livrar dela, exige usufruir os bens acumulados a seu lado. O desfecho não tem nada de romântico, fazendo jus ao estilo naturalista da obra.

sábado, 30 de março de 2013

Livro 89: Os Capitães da Areia (Jorge Amado)


Publicado em 1937, Capitães da Areia é um dos mais famosos romances do escritor baiano Jorge Amado. Escrito na primeira fase da carreira do autor, desde o lançamento a obra causou escândalo, sendo considerada objeto de propaganda comunista e "nociva à sociedade". Inúmeros exemplares foram queimados em praça pública, por determinação do Estado Novo. 
O motivo? A temática política, questionadora em defesa dos menos favorecidos. 
Dividida em três partes, tendo como cenário a cidade alta de Salvador, nos anos 30, nota-se na obra uma grande preocupação social do autor, que ataca indiretamente o clero e as autoridades, através de um grupo de menores abandonados e arruaceiros, que fazem suas próprias leis e se autodenominam os Capitães da Areia.
Vivendo em num trapiche, espécie de armazém abandonado no cais de Salvador, à margem da sociedade, os meninos têm em comum a pobreza e a revolta contra o mundo que lhes é hostil. Para sobreviver, eles roubam das classes privilegiadas e dividem o produto do roubo entre os companheiros, ao melhor estilo Robin Hood. Perseguidos pela polícia, o grupo reage de forma também agressiva. Na falta dos pais e de qualquer autoridade, os Capitães de Areia fazem do armazém uma espécie de lar e se tratam como uma família. As únicas pessoas externas ao grupo com quem se relacionam são o Padre José Pedro e uma mãe-de-santo, Don'Aninha.
Antes de contar a história, o autor apresenta uma série de pseudo reportagens onde explica quem são os menores, sua personalidade, apelido e papel no grupo.
O líder do grupo é Pedro Bala, um rapaz de 15 anos, com louros cabelos longos e cicatriz no rosto. Mesmo sendo tão jovem quanto os outros, ele é uma espécie de pai para os garoto. É ele quem planeja os roubos, e além de liderar, tem a função de harmonizar as condutas.
Volta Seca é um mulato sertanejo, que tem ódio das autoridades e sonha entrar para o Cangaço de Lampião. Professor, o único do grupo que sabe ler, é quem traça as estratégias. Gato, o mais bonito da turma, tem um caso com a prostituta Dalva, que lhe dá dinheiro. Sem Pernas, um garoto miúdo e coxo de uma perna, finge ser um pobre órfão, para entrar nas casas e descobrir onde ficam os objetos de valor. Boa Vida, mulato troncudo e feio, é o mais malandro de todos, com talento especial para tocar violão.  Pirulito,  magro e muito alto, com olhos fundos, é o único do grupo com vocação religiosa. Já o João Grande, a quem Pedro Bala chama de “o negro bom”, é forte e bronco, mas de bom coração. É o defensor dos meninos pequenos do grupo. E finalmente Dora, a única menina do grupo, que assume o referencial feminino da família: mãe ou irmã dos meninos. Ela acaba se envolvendo amorosamente com Pedro Bala.
 Na primeira parte, "Sob a lua, num velho trapiche abandonado" o autor conta histórias sobre alguns dos principais Capitães da Areia. Inicialmente, eles se envolvem com um carrossel mambembe recém-chegado na cidade, exercendo sua meninice. Mas quando uma epidemia de varíola atinge a cidade, matando um deles, o grupo volta imediatamente à triste realidade.
A segunda parte, "Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos", traz o romance trágico de Dora e Pedro Bala. Quando ela se torna a primeira "Capitã da Areia", os meninos, que têm o hábito de “derrubar negrinhas” na orla, tentam agarrá-la a força, mas ela acaba se tornando uma mãe e irmã de todos. Participando dos roubos junto com os garotos, numa ocasião em que o grupo é pego pela polícia, Dora é levada  para o Orfanato e Pedro Bala para o Reformatório, onde são duramente castigados. Quando escapam, muito enfraquecidos, se amam pela primeira vez na praia. Um episódio triste marca o começo do fim para os principais membros do grupo.
A terceira parte, "Canção da Bahia, Canção da Liberdade", mostra a desintegração dos líderes. Sem-Pernas se mata antes de ser capturado pela polícia que odeia; Professor parte para o Rio de Janeiro para se tornar um pintor de sucesso; Gato abandona sua amante Dalva e muda-se para Ilhéus, tornando-se um malandro de verdade. Pirulito segue sua vocação e se torna padre. Volta Seca vira cangaceiro do grupo de Lampião e mata mais de 60 soldados antes de ser capturado e condenado; João Grande torna-se marinheiro; e Pedro Bala, após descobrir que era filho de um sindicalista morto numa greve, se envolve na causa dos doqueiros. Depois que os Capitães da Areia os ajudam numa greve, Pedro Bala abandona a liderança do grupo, tornando-se assim um líder revolucionário comunista.
Publicada num período em que o Brasil vivia um momento conturbado, quando se tomava consciência da luta de classes, na ascensão de Getúlio Vargas ao poder, Capitães de Areia é uma obra que mistura poesia rústica com extratos de uma realidade nua e crua.  Considerado um livro revolucionário para a época, ainda hoje, passadas sete décadas, continua atual.


 "Sob a Lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem. Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. " 

sexta-feira, 29 de março de 2013

Livro 88: Dom Casmurro (Machado de Assis)

Escrito em 1899, o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, completa a trilogia realista do escritor, junto com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Considerado a obra-prima do Bruxo do Cosme Velho, foi traduzido para vários idiomas e é fundamental para se conhecer a literatura brasileira.
Livro obrigatório nas escolas, sempre inserido nas provas de vestibular, conquistou a injusta fama de enfadonho, apenas porque a maioria das pessoas não se dá ao trabalho de lê-lo com outros olhos, fora do ambiente escolar. Dom Casmurro é sim, uma leitura saborosíssima. 
Ambientado no Rio de Janeiro do Segundo Império, o livro usa como recurso a narrativa, escrita em primeira pessoa. Quem conta a história é o personagem principal, Bento Santiago, descrevendo sua vida desde a meninice até a maturidade, o romance e casamento com a vizinha e amiga de infância, Capitolina, a quem todos chamavam Capitu.
"Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres."

"Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem".
O relacionamento, que começa carinhoso e quase inocente, com brincadeiras no quintal, após o casamento e o nascimento do único filho, Ezequiel, evolui para uma união sombria, cheia de desconfiança por parte de Bentinho, a respeito da paternidade da criança.
O alvo das suspeitas é justamente o melhor amigo de Bentinho, de seus tempos de seminário, Escobar, que se casara com outra vizinha, Sancha.
Com uma abordagem ousada, que se divide entre os ciúmes de Bentinho e a ambiguidade de Capitu, Dom Casmurro recebeu inúmeros estudos, adaptações e interpretações, tanto psicológicas quanto psicanalíticas ao longo das décadas, sendo considerado um precursor do modernismo.
 Escrito na maturidade do autor, Dom Casmurro traz todas as características presentes na obra de Machado de Assis:  os capítulos curtos, as palavras - mais do que escritas - esculpidas. As dezenas de frases que viraram citações clássicas, atemporais. Os hábitos e paisagens do Rio de Janeiro dos tempos imperiais. A crônica dos costumes, com uma descrição de um Brasil que não existe mais, como se fosse o dia de ontem. O amor juvenil de Bento e Capitu ganhando cores ainda mais escuras: paixão inocente virando angústia, desconfiança, neurose, lágrimas.
E a eterna pergunta que se repete até os dias de hoje, em rodas de estudos ou em bate-papo na mesa do bar: "Capitu traiu ou não traiu Bentinho?"
A respeito da temática que tornou o livro célebre e discutido até hoje, passados mais de cem anos, um dos grandes trunfos do romance é a personalidade da heroína, que prefere calar-se ao invés de se defender. 
 Personagem forte, sempre sobressaindo ante o frágil e inseguro Bentinho, Capitu, com olhos de cigana oblíqua e dissimulada jamais se pronunciou em sua defesa, preferindo exilar-se com o filho no exterior.
O silêncio de Capitu, na verdade foi o silêncio de Machado. 
Jamais disse nem que sim, nem que não, embora tenha deixado pistas distribuídas pelos capítulos. É provável que a explicação para o sucesso da obra venha justamente do fato de o autor ter deixado um véu sobre a questão. Tivesse o romance sido lançado em tempos de Big Brother, teria sido assediado por jornalistas, microfone em punho, a questionar "Traiu ou não traiu?" 
O que torna Dom Casmurro uma obra inigualável é que essa pergunta pode ser debatida, comentada, repetida, mas nunca respondida.
Se certos escritores têm parte com os deuses, como prova sua obra Machado de Assis de Assis não era humano. Situava-se numa categoria acima. Esse brasileiro pobre, mulato, autodidata, criou um estilo que muitos seguem e nenhum consegue igualar. Mais do que o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis é hoje um dos maiores gênios da literatura mundial. Capitu teria concordado.

"Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada."

"Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo."

quinta-feira, 28 de março de 2013

Livro 87: A Casa de Virginia W. (Alícia Giménez Bartlett )

Muito pouco resta a ser dito ou escrito sobre Virginia Woolf (1882-1941). Romancista, crítica literária e ensaísta, uma das pioneiras do modernismo britânico, dona de um estilo único e uma escrita poderosa, escreveu obras memoráveis como Mrs Dalloway, As Ondas e Orlando; e brilhantes ensaios como Um Teto Todo Seu, contribuindo, como poucas, para a valorização da voz  feminina na literatura.Mulher a frente de seu tempo, no sentido menos piegas da expressão, fundou com o marido, Leonard Woolf, a Hogart Press, que se tornou uma das mais influentes editoras britânicas do século XX. 
Ambos faziam parte do seleto Grupo Bloomsbury, formado por intelectuais sofisticados, que introduziu um novo pensamento literário na Inglaterra, em oposição à tradição vitoriana. Com um casamento atípico e feliz, marcado por cumplicidade, respeito e liberdade, Virginia viveu várias e intensas paixões por mulheres. Mais do que amá-las, aparentemente o que mais gostava era o fato de ser amada por elas.
Mas a parte mais marcante de sua personalidade era menos feita de sonhos que de pesadelos. Com episódios frequentes de alucinações e crises depressivas, vivia entre a loucura e a genialidade, entre a apatia e a produção, entre a paixão e a melancolia. Pouco à vontade no mundo, buscava nos livros um refúgio e na literatura uma salvação. E tinha tanto medo de enlouquecer que acabou pondo fim à vida em 28 de março de 1941, aos 59 anos, jogando-se no Rio Ouse. Sua carta despedida sugere que estava assim libertando o marido de um futuro sombrio ao seu lado. 
Contudo, havia uma Virginia, mais precisamente a do lado de dentro de casa, que entre trechos de romance e visitas de amigos/as ou períodos de depressão, se dedicava à prosaica tarefa de dar ordens às empregadas que a serviram por anos, Nelly Broxall e Lottie Hope.
É essa a Virginia retratada pela escritora espanhola Alicia Giménez Bartlett, em A Casa de Virginia W. Nesse romance, ela expõe a relação tumultuada entre a escritora e Nelly Broxall, que trabalhou para os Woolf por 18 anos. Um relacionamento cordial no início, delicado com o passar dos anos e perigosamente nocivo no final. 
A ideia do livro surgiu quando Giménez, estudiosa do grupo Bloomsbury e seus protagonistas, debruçada num dos diários de Virginia, se deparou com o seguinte trecho: “Se este diário tivesse sido escrito por mim e um belo dia caísse em minhas mãos, eu tentaria escrever um romance sobre Nelly, a personagem. Toda a história entre nós duas, os esforços de Leonard e meus por nos livrarmos dela, nossas reconciliações.”
Resolveu então atender a esse “chamado”.
Pesquisando sobre o paradeiro de Nelly, acabou descobrindo em Londres uma certa Lady Prudence, que havia arrematado o diário da criada em um leilão. Conseguiu dela a autorização para fotografar as páginas, desde que não as usasse na totalidade. Promessa feita, desafio encaminhado. Muda-se para Londres e mergulha na tarefa de decifrar, com base no diário de ambas, a complicada relação entre as duas.
Alternando imagens reconstruídas de episódios registrados em biografias sobre a escritora, com trechos extraídos dos diários, Bartlett nos revela o mundo doméstico de Virginia Woolf. As conversas triviais com as criadas, a escolha do cardápio do dia, jantares com amigos e suas constantes crises depressivas. Durante todo o livro, as vozes se alternam. Ora é um diálogo recriado entre Virginia e a criada sobre o significado do voto feminino (na época aprovado com inúmeras restrições); ora um trecho do diário de Nelly com reflexões sobre o estado de espírito de Virginia ou a falta de perspectiva de sua vida; num momento, um panorama das dificuldades pelas quais passava a Inglaterra em tempos de guerra; em outro, a voz da própria Alicia que se faz ouvir, com colocações sobre Virginia, sobre Nelly – e o tempo chuvoso de Londres!
 “Eu gosto quando a patroa está contente e não aguento quando a vejo com aquele olhar tão triste que se perde no ar. A patroa está completando 36 anos.”
“A patroa está de cama há quatro dias. Quando tem gripe ela nunca se levanta antes de uma semana. Isso também me entristece.”
Na recriação de autora, visualizamos uma atarantada serviçal, não muito inteligente, mas não de todo ignóbil, que soube tirar proveito do contato com os patrões intelectuais e seus amigos para ampliar seus pensamentos e seu universo. Nos jantares na casa de Virginia e Leonard era comum se encontrar artistas e intelectuais como Roger Fry, Katherine Mansfield, Vanessa Bell (irmã de Virginia) e a poetisa Vitta Sackville-West, com quem ela teve um forte affair que inspirou a obra Orlando, descrita por Nigel Nicholson como "a mais longa e mais encantadora carta de amor de toda a literatura".
“Ontem chegou a honorável Sra Vitta Sackville-West também chamada Sra Nicholson que passará toda a semana conosco em Monk´s House. É a primeira vez que eu vejo uma honorável. Não saberia dizer se ela é bonita ou não.”
Os hábitos inusitados do casal e as ideias avançadas do grupo não escapam ao olhar atento e espantado das criadas:
“Meu Pai eterno, ri tanto que achei que muitas costelas iriam se partir! Imaginei tudo desde o princípio, desde que Lottie veio porta adentro com os olhos arregalados e me disse que eles tinham começado a falar da Sociedade Britânica do Sexo. Estava escandalizada, sobretudo, porque haviam falado na sua frente, quando ela preparou a mesa para servir o chá.”
Embora aprendesse muito com o convívio com os patrões, Nelly delimitava uma linha imaginária que a separava do mundo deles. Jamais teria uma casa, dificilmente teria um casamento e ainda que o tivesse (como a própria patroa dizia), provavelmente seria mais uma escrava do marido, trabalhando sem receber.
“Então uma mulher não deve se casar nunca?”
“Não sei, Nelly, não sei, talvez em tempos menos complicados, ou com um homem que ele possa oferecer algo melhor.”
O fato é que Nelly rompeu um noivado com um homem bastante simples e nunca se casou.

Com o tempo, nos diários de Nelly e de Virginia, Alicia descobre menções a respeito de incidentes domésticos, percebendo as transformações pelas quais passa o relacionamento. Nelly torna-se mais questionadora, Virginia mais impaciente. Nelly se comporta de forma crítica e irônica. Virginia mantém-se distante, quase indiferente. Muito embora a animosidade se alternasse com fases de tranquilidade, o fato é que a relação entre as duas parecia prestes a explodir.
Entre diversas reflexões, Bartlett busca analisar, aos olhos de Nelly, o envolvimento de Virginia Woolf com suas amigas. “É inútil tentar saber se entre Virginia Woolf e Vitta Sackville-West houve algo maior que um amor espiritual baseado na fascinação mútua. Há biógrafos que se inclinam por essa opção e outros que sustentam que entre ambas houve contato sexual. (...) Lendo o diário de Nelly, também não podemos encontrar alguma luz sobre a índole desse amor. Mas isso pouco importa para minha reconstrução da vida de Nelly. O fato evidente é que aquela relação escandalizava a cozinheira , e não porque fosse algo diferente daquilo a que os membros do grupo a tinham acostumado, mas pela vergonha pública que representava para Leonard Woolf. Curioso.”
Baseado nos relatos do livro, não causa estranheza o comportamento da criada. Para alguém como ela, que nada possuía de seu no mundo (nem mesmo o quarto em que dormia), sem perspectiva de ascensão, seria quase impossível não acalentar ressentimento pela patroa, bem nascida, intelectual e que tendo a sorte de um bom casamento, não valorizava tal destino. Aos olhos de Nelly, limitada em seu mundo de poucos sonhos, esta era possivelmente a maior afronta de Virginia: 
Ter a coragem de viver como queria e da forma com a qual acreditava.
Quanto a Virginia Woolf, sempre imersa em seus trabalhos e reflexões, era provável que o temperamento agitado e atrevido da criada lhe provocasse mais cansaço do que repulsa.  A própria Nelly se queixa à Lottie: “Preferia que ela brigasse, não que ficasse com essa expressão de vítima no olhar”.
Para a circunspecta Virginia, devia ser mesmo complicado conviver com  os rompantes de urgência de Nelly, que a retirava de seu processo de sonho (a criação, a intelectualidade) para lembrar que faltavam legumes na despensa e que o preço do peixe estava caro.
Duas mulheres tão diferentes, tão perigosamente opostas, que é de se admirar que tenham convivido durante tanto tempo.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Livro 86: O Diário de Anne Frank

 " Um dos maiores e mais sábios comentários da guerra e seu impacto no ser humano que eu jamais li" (Eleanor Roosevelt)
"Uma voz fala para 6 000 000; a voz não de uma sálvia nem um poeta, mas de uma menininha costumeira".  (Ilya Ehrenburg,  escritor ucraniano)
Uma menina de 13 anos escondida com sua família no porão de um prédio em Amsterdã, na Holanda marcada pela perseguição dos nazistas aos judeus.Um diário onde ela decide expor seus pensamentos sobre a vida, seus medos, sonhos e incertezas, alternando momentos de profunda maturidade e outros de sadia meninice.
Assim nasceu o "Diário de Anne Frank" (no original Het Achterhuis - Dagboekbrieven 14 juni 1942 - 1 augustus 1944), um dos livros mais lidos no mundo desde sua publicação em 1945, após a morte da autora num campo de concentração. A obra, publicada em holandês sob o título Het Achterhuis (O Anexo), logo se tornou sucesso de vendas, com tradução em várias línguas e adaptação teatral e cinematográfica.
Ao iniciarmos a leitura, sabendo do trágico destino da personagem e das condições subumanas em que vive junto com sua família, espera-se um derramar de lágrimas e lamentos. No entanto, o texto de Anne nos surpreende por sua força, seu senso de realidade, sua coragem e fé na vida, seu jeito positivo de enfrentar as adversidades de sua triste realidade.
Nascida em Frankfurt , Alemanha, em 1929, Anne Frank mudou-se para Amsterdã com os pais, Edith e Frank, e a irmã mais velha, Margot,  em 1933, quando teve início a ascensão nazista. Levavam uma vida abastada e Frank tinha uma empresa, a Opetka. 
Com a eclosão da Segunda Guerra, os países Baixos foram anexados ao III Reich e em 1942. Quando Margot é convocada a ir para o campo de trabalhos forçados de Westerbork, na Alemanha, Otto decide que é hora de proteger a família. Depois de passar os negócios para seus empregados não judeus, muda-se se com a esposa e as filhas para um anexo na parte traseira do edifício da empresa, previamente preparado para servir de esconderijo. Juntam-se a eles mais quatro amigos judeus - Herman e Auguste van Pels, com seu filho Peter; e Fritz Pfeffer. Ali o Grupo passa os dois anos seguintes, contando com a solidariedade de amigos que levavam alimentos e outros auxílios à noite, constantemente aterrorizados com a possibilidade de serem descobertos. 
Para uma menina cheia de vida como Anne, parecia impossível manter o silêncio e a serenidade. O mundo pulsava lá fora e ela teve que reinventar seus sonhos. 

 Ao ganhar de presente de aniversário um Diário, ela decide relatar nas páginas a experiência vivida no “Anexo Secreto”. As tarefas que partilhava com outros moradores, as alegrias e brigas, e a esperança de poder conquistar a liberdade com o fim da Guerra. 
É com  a amiga imaginária “Kitty”, nome que dá ao Diário, que ela passa horas, dias e meses refletindo sobre si mesma, sua família e a convivência com os companheiros que viviam no mesmo prédio,  Não faltam reflexões sobre o futuro e sua ânsia de fazer a diferença no mundo.
"Escrever um diário é uma experiência realmente estranha para alguém como eu. Não somente porque nunca escrevi nada antes, mas também porque acho que ninguém se interessará, nem mesmo eu, pelos pensamentos de uma garota de treze anos. Bom, não importa. Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisa do meu peito". (A.F.)
“Mas eu quero alcançar mais do que isso. Eu não posso imaginar ter que viver  como Mamãe, Mrs Van Daan e todas as mulheres que fazem seu trabalho e são esquecidas. Eu preciso ter algo mais do que um marido e filhos a quem me dedicar! Eu não quero viver em vão como a maior parte das pessoas.” (A.F.)
"Por vezes penso que Deus quer pôr-me à prova. Tenho de me aperfeiçoar sozinha, sem exemplo e sem ajuda, só assim hei-de ser um dia forte e resistente. Quem, além de mim, lerá estas coisas? Quem pode ajudar-me? Necessito de ajuda e de consolo! Sou muitas vezes fraca e incapaz de ser aquilo que gostava de ser." (A.F.)
"Há uma necessidade destrutiva nas pessoas, a necessidade de demonstrar fúria, de assassinar e matar. E até que toda a humanidade, sem exceção, passe por uma metamorfose, as guerras continuarão a ser declaradas, e tudo que foi cuidadosamente construído,cultivado e criado será cortado e destruído,só para começar outra vez!" (A.F.)


Sobre a ajuda dos amigos, ela escreve:  
"Todos os dias sobem até aqui, falam com os homens sobre o negócio e a política, com as senhoras sobre as dificuldades do governo da casa e conosco, os jovens, sobre livros e jornais. Entram sempre de cara satisfeita, não se esquecem, nos dias de festa, das flores e das prendas e estão sempre prontos a ajudar. Não devemos esquecer nunca, apesar de todas as heroicidades dos campos de batalha e de toda a luta contra os opressores, os sacrifícios dos nossos amigos, aqui, junto de nós, as provas diárias de simpatia e amor!"(A.F. - 28.01.44)
Quando o esconderijo é descoberto por agentes da Gestalpo, eles são levados para um campo de trabalho em Westerbork, nos Países Baixos, e
Otto Frank
depois para Auschwitz, onde Edith morre de inanição. Anne e Margot morrem de tifo no campo de Bergen-Belsen em março de 1945. Anne tinha apenas 16 anos. O único sobrevivente da família, Otto Frank, ao ser libertado, recebe da amiga  Miep Gies, o diário de Anne, que permanecera guardado no Anexo. Decide então publicá-lo, atendendo ao desejo da filha de ser escritora.
O prédio onde a família se escondeu.
Foi assim que o mundo teve acesso a um tocante  depoimento sobre um dos momentos mais negros da história da humanidade.
Escrito de 1942 a 1944, o "Diário de Anne Frank" não é apenas o relato de uma vítima, mas de uma jovem que teve seu futuro cortado pela intolerância, e que nem por isso se deixou levar pela amargura. Ao escrever seu Diário, Anne queria apenas conversar com alguém. Provavelmente, jamais pensou que aquele seria um testemunho histórico. Tinha fé de que aquele pesadelo acabaria e que ela poderia realizar seu sonho de tornar-se escritora. O destino, comandado por Hitler, colocou um ponto final no sonho. Mas não impediu que as palavras de Anne Frank ecoassem no mundo inteiro.
"Quero vir a ser alguém. (...) Quero continuar a viver depois da minha morte. E por isso estou tão grata a Deus que me deu a possibilidade de desenvolver o meu espírito e de poder escrever para exprimir o que em mim vive. Quando escrevo sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta. Mas pergunto-me: escreverei alguma vez coisa de importância? Virei a ser jornalista ou escritora? Espero que sim, espero-o de todo o coração!" (Anne Frank) 
Morto em 1980, Otto Frank deixou os manuscritos da filha para o Instituto Estatal Neerlandês para Documentação de Guerra, em Amsterdã. O Fundo Anne Frank na Suíça detém os direitos de sua obra. 

terça-feira, 26 de março de 2013

Livro 85: Tempos muito Estranhos (Doris Kearns Godwin)

Quando a Alemanha de Hitler já tinha invadido diversos países e a Inglaterra lutava desesperadamente para manter-se estável, os japoneses atacaram Pearl Harbour - e os EUA foram forçados a entrar no conflito. Esse livro conta os bastidores dessa história na casa mais famosa dos EUA: a Casa Branca.
Tempos muito estranhos, de Doris Kearns Godwin, é um relato dos anos de Franklin Delano Roosevelt no posto de homem mais importante dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Confesso que  que antes de lê-lo, pouco sabia sobre Franklin Delano Roosevelt. Sabia de sua relevância no new deal, a aliança com o poderoso Churchill durante a Segunda Guerra, mas não conhecia muito de sua personalidade. E o livro acabou sendo uma lição que nunca aprendi na escola. Ele revela o cotidiano do casal Franklin - Eleanor Roosevelt, seus amigos, companheiros (e amantes) durante o maior conflito mundial, ao mesmo tempo em que esboça os acontecimentos mais marcantes da época. Ao longo dos capítulos, desvenda a personalidade carismática de Roosevelt; a paralisia após a pólio, que não o impediu de ter uma vida pública intensa; seu otimismo e autoconfiança, sua habilidade em cativar pessoas dos mais diferentes tipos, seu casamento e parceria com Eleanor Roosevelt, que teve uma ascensão gradativa, de simples esposa do presidente a uma das mulheres mais influentes do país – quase ofuscando o brilho do marido.
O livro é enriquecido pela descrição de personagens fascinantes que, mais do que participar da vida do casal, compartilhavam de sua intimidade, morando em aposentos da Casa Branca; alguns, durante anos. Entre eles, Missy LeHand, secretária partícular e amiga do presidente, que a ele devotava verdadeira adoração. Segundo alguns, Missy se comportava como a real esposa de Franklin, que tinha por ela a mesma afeição; Harry Hopkins, que a autora chama de alter-ego de Roosevelt, seu assessor no período mais conturbado de seu mandato. De aspecto frágil e esquelético, Hopkins era, porém, muito contundente em suas ações e fiel ao extremo. Era ele quem viajava para a Inglaterra para encontros estratégicos com Churchill, antes mesmo do primeiro contato entre os dois estadistas.
Outra figura peculiar era Lorena Hickock, chamada de Hick, jornalista e grande amiga de Eleanor, com quem, especula-se, ela teve uma ligação amorosa. E o próprio Churchill, que esteve hospedado algumas vezes na Casa Branca, com seus hábitos pitorescos de só dormir de camisolão e pedir ao mordormo “uma dose de Cherez pela manhã, duas de uísque com soda no almoço e um champanhe 90 anos à noite”, além da escapulida diária para a sesta vespertina.
Em um dos trechos mais engraçados do livro, o primeiro ministro inglês aparece de camisolão, traseiro à mostra, engatinhando no compartimento de bombas do avião que o transportava para um encontro em Casablanca com o presidente americano.
O livro reúne, ainda, momentos contundentes, como quando a população americana é conclamada a participar, doando potes e panelas de alumínio para serem derretidos e reutilizados na fabricação de aviões. Meias de seda das senhoras deveriam ser doadas para a fabricação de para-quedas, momento em que Eleanor, para dar exemplo, passa a usar meias pretas de algodão.
Em Tempos muito estranhos, a primeira dama ocupa espaço tão relevante quanto o do presidente. Sempre fiel à causa social e impelida a participar  efetivamente dos acontecimentos em seu país, foi a primeira esposa de presidente a ter um emprego no governo, a comparecer diante de um congresso, a dar coletivas à imprensa e manter uma coluna nos jornais. É marcante no livro sua decisão de viajar para a Inglaterra para visitar as tropas americanas ali posicionadas. Nos EUA, quando a mão-de-obra torna-se escassa, ela incentiva as norte-americanas a entrarem para o mercado de trabalho, já que os homens, seus pais, maridos e irmãos estavam no front de guerra – e o país não podia parar. Com isso, as mulheres tomaram gosto, assumiram tarefas tidas como masculinas em fábricas e indústrias e nunca mais foram as mesmas. Porém, o fato de Eleanor aparecer com tanta intensidade no livro, não significa que Roosevelt não se destaca. Ao contrário: carismático e confiante, ele justifica a imagem de um dos homens mais importantes de sua época e as passagens de seus diálogos com Churchill são inesquecíveis. Em determinado ponto, registra-se uma frase de Roosevelt para o amigo britânico: “É muito divertido estar na mesma década que você". Em outro trecho, quando alguém pergunta à Primeira Dama como pensa o Presidente, esta responde: "Meu caro, o Presidente não pensa, ele decide".
É interessante como esse homem, que se locomovia por cadeira de rodas, quase nunca demonstrava fraqueza. Caminhava apoiando-se e discursava de pé, daí o fato de sua deficiência ser muitas vezes esquecida. A imprensa era tão solidária a ele que não o fotografava em cadeira de rodas.
Eu levaria algumas páginas para discorrer sobre por que Tempos Muito Estranhos é um grande livro. Mas prefiro recomendar a leitura. Será muito mais prazeroso.

Livro - Tempos Muito Estranhos
Autor: Doris Kearns Godwin
Editora: Nova Fronteira

segunda-feira, 25 de março de 2013

Livro 84: Alice e Ulisses (Ana Maria Machado)

O primeiro parágrafo já é um jogo de palavras que sibilam, remetendo a seu nome-sussurro: Alice. E já se prenuncia a vertiginosa viagem a que nos conduzirá a autora nesse caso de amor contemporâneo. Percebe-se um mergulho, um salto sem paraquedas, um voo no escuro. “Aliciada ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variadas que tenham sido os desvairados desvãos e deslizantes desvios.”

É dessa forma que Alice invade a vida de Ulisses, o outro. E a vida do leitor.
Primeiro romance para o público adulto da escritora e jornalista Ana Maria Machado, "Alice e Ulisses", publicado em 1983, já anunciava insuspeitado poder de sedução oculto por trás das histórias infantis nas quais ela reinava (e continua reinando, décadas depois).
Quando Alice, professora, descasada, conhece Ulisses, cineasta, casado, o que se segue é uma viagem pelo mundo da paixão, recheada de referências cinematográficas, enquadramentos sutis, citações poéticas e trechos de contos de fadas. Tudo para tecer o fio da meada que conduz à relação tempestuosa, voraz e intensa de Alice e Ulisses.  
Retrato de uma época, “Alice e Ulisses” trata de um amor contemporâneo, em tempos de ditadura, nos quais a mulher ainda estava presa a estereótipos e o homem  (como sempre) se dividia entre aventuras extraconjugais e as bases sólidas de um casamento de aparências. Num tempo em que a relação homem-mulher ainda era cheia de arestas, com homens que podiam tudo e mulheres que pediam nada, a autora exerce sedução desde a primeira página, onde o encontro amoroso já está presente. E a poesia também.
Trata-se de um caso de amor, contado de um só fôlego, em exatas 113 páginas, num paralelo entre duas personagens universais, a destemida Alice (de Lewis Carrol), "capaz de mergulhar em tocas e viver aventuras" e o bárbaro conquistador Ulisses (de Joyce, releitura do Ulisses de Homero), em sua odisseia particular.  Só da mente de uma sagaz autora e contumaz leitora, amante dos clássicos, sairia esse inusitado casal, cujos nomes rimam – como bem assinala uma personagem do livro, o bruxo Augusto, que os une - reúne.
É num evento de cinema que Alice, mulher moderna "que acha coquetel um pé no saco” e sempre “se esquece de pegar o guardanapo de papel para  limpar a mão”, conhece o cineasta Ulisses, que se encanta com a figura exótica “de cabelo solto e um imenso xale de velha siciliano, indeciso entre escorregar e enrolar os ombros”. Não se desgrudam mais. Entre os anos 70 e 80,  vivem uma paixão atemporal, ilícita e ao mesmo tempo livre. 
Bem que ela devia “desconfiar que o nome de Ulisses já indicava sua maneira de ser, saqueador de cidades, astuto e ardiloso, viajante e explorador.” Mas Alice, que tinha  “total disponibilidade para mergulhar em tocas pela terra adentro",  paga pra ver.
O romance é entremeado por citações de contos de fadas, trechos de poemas e cenas de filme. Ela cita versos, ele enquadra-a em imagens. Ela sabe onde pisa, ele se enreda, sem controle. “Foi duro aprender que quanto mais fosse amada mais ia ser dominada.” Mas Alice não é mulher de se dominar. Conhece os scripts, os lugares comuns do roteiro. Ela sabe como a história termina. Todos os personagens dele, ou matam ou morrem. “Você vai me matar.”
Quando Alice está cada vez mais envolvida numa relação na qual não é só Ulisses quem perde a razão, surge em seu caminho Adélia, a esposa (do grego Adelo, invisível). É a Penélope de Ulisses (ou Molly, de Joyce) entrando em cena.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
É justamente Adélia, tão tradicional, tão antiquada, tão Amélia, quem trará uma alerta a Alice: - A vida não é um conto de fadas, minha filha. 
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.


Um aviso. É interessante ler a Odisseia de Ulisses para compreender ainda melhor os desvãos (e o desfecho) dessa paixão.

Alice & Ulisses 

Ana Maria Machado
96 páginas
Editora: Nova Fronteira

Jornalista, artista plástica, escritora, Ana Maria Machado escreveu mais de 100 livros para crianças e adultos.  Conquistou o prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Prêmio Nobel da LIteratura Infantil mundial. Em 2001, a Academia Brasileira de Letras lhe concedeu o maior prêmio literário nacional, o Machado de Assis, pelo conjunto da obra. É Presidente da Academia Brasileira de Letras.

Esse livro tem que ter uma menção especial. Além de ser minha prima por parte de pai (filha da minha tia avó Dinah e de Mário Martins, senador), é uma referência para mim. Uma bela mulher, culta, bem-sucedida que tem milhares de histórias para contar. E que por isso se tornou, não apenas uma das melhores escritoras de livros infantis do país, como excelente autora para todas as idades. Li Alice & Ulisses quando ainda estava na Faculdade, era um livro inovador, com uma linguagem moderna, ousada, intensa, bem ao estilo da época. Encantei-me com essa estreia da Ana Maria na literatura para adultos. E hoje, relendo a obra, continuo encantada.


domingo, 24 de março de 2013

Livro 83 Maysa (José Roberto Santos Neves)

Ele não tinha nem seis anos de idade, quando Maysa, a musa dos olhos verdes da música brasileira, se dirigiu para a morte, no dia 22 de janeiro de 1977, a bordo de sua Brasília azul, na Ponte Rio Niterói. Ainda assim, o jornalista capixaba José Roberto Santos Neves aceitou o desafio de contar a história de uma das maiores cantoras que o país já produziu.
Dona de uma voz grave e rascante, Maysa cantou como ninguém a dor e a delícia de ser o que é (bem antes do famoso verso de Caetano Veloso).
O livro "Maysa" inicialmente fez parte da coleção Grandes Nomes do Espírito Santo, organizada por Antônio Pádua Gurgel, que reúne biografias de personalidades ligadas à história do estado. O autor gostou tanto da experiência que lançou uma segunda edição em 2008, repaginada e reabastecida de informações que ele alinhava com o respeito e cuidado de quem aprendeu a admirar ainda mais Maysa, à medida que desvendava sua história, repleta de emoção, entrega, paixão e dor.
No livro, José Roberto conta como Maysa, sendo filha de  família ilustre capixaba (seu avô foi o Barão de Monjardim e seu pai, Alcebíades Monjardim foi deputado estadual e federal), acabou indo nascer em Botafogo, Rio de Janeiro, no ano de 1936, onde os avós maternos viviam. E pelas mãos de uma parteira, como era comum na época.
Sempre com foco no ES, ele revela que Maysa viveu o primeiro ano na capital do estado, Vitória, mudando-se com a família para Bauru, no interior de São Paulo, quando seu pai é convidado por Getúlio Vargas para exercer o cargo de Fiscal do Imposto do Consumo.
Em São Paulo, a casa de Maysa respirava música. Além da tia Lia, que tocava piano e a ensinou a dedilhar o instrumento, sua mãe era amiga de Elizeth Cardoso, que se tornaria sua inspiração. E seu pai, amigo de Sílvio Caldas, com quem a menina aprendeu os primeiros acordes de violão.
Mesmo morando fora, as raízes capixabas são mantidas e a família costuma passar o verão em Vitória, na casa de parentes. Dessa época, vem a convivência intensa com o primo Jayme Figueira, cujo depoimento é valioso no conteúdo do livro.
Segundo José Roberto, a vida de Maysa dá uma guinada logo no fim da adolescência quando conhece o empresário André Matarazzo, 18 anos mais velho, rico e influente. Ao se casarem, em 1954, ela tinha apenas 18 anos, e a cerimônia é tão concorrida quanto um casamento de celebridades. Dois anos depois, nasce seu primeiro e único filho, Jayminho, que se tornaria o reconhecido diretor de novelas Jayme Monjardim. 
O casamento já dá sinais de desgaste. Maysa, apaixonada pela música começa a se apresentar timidamente em eventos fechados, até que surge o convite para gravar um disco. A rigidez e formalidade de André, que não via com bons olhos o desejo da esposa de cantar profissionalmente, e o peso do nome Matarazzo tornam-se empecilhos para a carreira. Para gravar seu primeiro LP, "Convite para ouvir Maysa", o marido exige que ela não use o sobrenome e que a renda seja revertida para fins beneficentes. Mal sabia ele que estava ajudando a lançar um nome que o Brasil jamais esqueceria.
Em pouco tempo, a bela moça mergulhou na carreira artística, conquistando bem mais que o público familiar, atraindo os olhos e ouvidos dos críticos e encantando o país. A carreira vai de vento em popa. Já o casamento, naufragava. 
“No segundo semestre de 1957, convidada para apresentar um programa na TV Rio, Maysa disse ao pai que não voltaria mais para São Paulo, nem para o marido. Alcebíades a entendeu. André, nem tanto. Ele foi ao Rio várias vezes tentar a reconciliação. Mas Maysa estava decidida.”
Com a separação, Jayminho é criado pelos avós maternos, já que ela viajava muito a trabalho. Maysa passa a enfrentar o grande inimigo de sua vida: o alcoolismo. Com tendência a engordar, começa a tomar moderadores de apetite, que, combinados com doses de uísque, a deixavam alucinada. Se a mistura já era perigosa, a forte personalidade de Maysa apimentava ainda mais seus efeitos. Desbocada, irônica e voluntariosa, ela se entrega de corpo e alma, à música e às paixões. Ela mesma admitiria, segundo José Roberto, que entre 1958 e 1972 sua vida se  tornaria “um pileque só”.
“A bebedeira a levava a tomar atitudes extremas como volta e meia atirar um sapato, copo ou microfone na cabeça das pessoas que conversavam mais alto nas boates onde ela se apresentava”. Bem mais radical que João Gilberto.
Estrelando o programa Encontro com Maysa, na Record, o sucesso da cantora não se refletia em seu estado de espírito.
“Compus muitas musicas e devo ter gravado umas cinquenta. Elas sempre refletiam meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui compor nada alegre”.
Quando a Bossa Nova chegou, arrebatando corações, Maysa até flertou com o ritmo, mas estava mesmo encantada com a dupla Tom e Vinicius.  Segundo José Roberto Santos Neves, entre as 24 gravações de “Eu sei que vou te amar” está a dela, no LP Maysa é Maysa...É Maysa..É Maysa, de 1959.
No mesmo ano, sairia o quarto LP, com músicas como "Exaltação do Amor", de Tom e Vinicius e Noite de Paz, de Dolores Duran, que viria a falecer naquele ano.
A carreira de Maysa seguiu entre altos e baixos, confundindo-se com sua vida. Entre seus grandes amores estão Ronaldo Bôscoli e Carlos Alberto. Com o primeiro, viveu um amor entre tapas e beijos, com direito a muitos barracos. Com o segundo, afirmava ser uma paixão de outras vidas. Entre um e outro, casa-se com o empresário Miguel Azanza e decide morar fora do país, tentando uma carreira internacional. A temporada no exterior não dura mais que três anos. Nem o casamento.
Está tudo contado no livro de José Roberto, que foi o primeiro a lançar uma biografia da cantora, reabrindo o interesse sobre sua vida e obra. Depois dele, vieram outros ótimos livros sobre a musa, de quem Manoel bandeira escreveu – "Maysa são dois olhos e uma boca".  
Para compor um retrato da bela Maysa, José Roberto colheu depoimentos de amigos próximos como Roberto Menescal, Ricardo Cravo Alvim e Sergios Sarkis, e de membros da família, como o primo e grande amigo Jayme Figueira, além de consultar obras como “Eu e elas”, a autobiografia de Ronaldo Bôscoli e “Chega de Saudade” (Ruy Castro).
Autora de canções como “Ouça” e “Meu Mundo Caiu”, Maysa foi intérprete memorável de músicas como “Se todos fossem iguais a você” e “Ne me quite pas”. Em cada canção, deixou sua marca registrada – a emoção à flor da pele.
São incontáveis e divertidas (ou não) as histórias de seus porres homéricos, barracos e confusões. Mas Maysa certamente foi muito mais do que isso – e por trás da aparência agressiva, havia uma mulher muito carente. Incompreendida, talvez. Sofrida, certamente. Mas inegavelmente uma das maiores – senão a maior voz que o Brasil viu nascer.
No livro, que traz na capa uma arte de seus belos olhos,  José Roberto Santos Neves traz um aperitivo para quem quer conhecer mais sobre a mulher Maysa. Porque a cantora dispensa apresentações.


José Roberto Santos Neves -  Nasceu em Vitória em 1971. Formado em jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com pós-graduação em Gestão em Assessoria de Comunicação pela Faesa.

sábado, 23 de março de 2013

Livro 82: O Apanhador no Campo de Centeio (J.D. Sallinger)

No dia 08 de dezembro de 1980, após assassinar John Lennon, o maluco Mark David Chapman, foi encontrado pela Polícia lendo, tranquilamente, “O Apanhador no Campo de Centeio", do autor norte-americano J. D. Sallinger. Segundo ele, teria extraído do livro a ideia de matar o ídolo. Também o atirador que tentou atingir o Presidente Ronald Reagan, em 30 de abril de 1981, afirmou ter sido influenciado pelo livro. Mais uma ideia estapafúrdia que contribui para aumentar a lenda e transmitir uma imagem errônea sobre a obra.


Publicado em 1951, "O Apanhador no Campo de Centeio"  pode ser considerado  o primeiro a descrever o universo de um típico adolescente, desvendando sua mente, seus medos, angústias, dramas e revolta. O livro narra um fim de semana na vida de Holden Caulfield, um rapaz de 17 anos, desiludido, sem perspectiva e desintegrado da sociedade. 

Um verdadeiro anti-herói que, no decorrer da história, se envolve em diversas situações, colocando em cheque sua visão de mundo e levando-o a questionar sua vida e seu futuro. 

Escrito numa linguagem peculiar dos jovens da época, chula e cheia de gírias, "O Apanhador no Campo de Centeio" tornou-se rapidamente um sucesso de vendas nos EUA e, em seguida, no mundo. Embora na época da publicação, o autor já estivesse com 32 anos, conseguiu de forma admirável traçar o retrato de uma geração. Pela primeira vez o jovem se sentia representado na literatura, o que contribuiu para tornar o livro um sucesso de vendas, nos EUA e depois no mundo.
Como Caulfield sugere em suas divagações, os mais velhos são os outros, os farsantes, os atores. Tudo o que ele deseja é ser ele mesmo. Com um relato honesto e sem hipocrisia, a obra fez de seu protagonista um ícone da rebelião adolescente e precursor do mito da juventude rebelde, anos antes de James Dean estourar.

Vindo de uma família abastada de Nova York, Caulfield está voltando para casa após ser expulso da escola, por conta de um péssimo desempenho. No intuito de adiar o confronto com sua família, ao invés de ir para casa, ele instala-se no decadente Hotel Edmont. Depois de um encontro desastrado com uma prostituta, Sunny, que parece ter a sua idade, ele decide procurar algumas pessoas que foram importantes para ele, como um velho professor, uma antiga namorada e sua irmã mais nova, Phoebe.
Com a ex namorada, Sally Hayes, ele não tem muito sucesso. Após assistirem a um show e patinar no gelo, Holden a convida para fugir com ele. Quando ela se recusa, ele revida: “Você é mesmo um pé no saco, se quer saber a verdade.”
Na ausência dos pais, o jovem decide visitar sua irmã mais nova, Phoebe, a única pessoa com a qual consegue se comunicar. Com ela, compartilha uma fantasia na qual se vê como o único guardião de inúmeras crianças correndo e brincando em um vasto campo de centeio na beira de um precipício. Seu trabalho  - diz ele - é pegar as crianças que vagam perto da beira – ele é o “Apanhador no campo de centeio”.
O próximo a ser visitado é o velho amigo Antolini, um professor de inglês aposentado, que lhe oferece um lugar para dormir. Dele ouve a afirmação de que "a marca do homem maduro é viver humildemente por uma causa, ao invés de morrer nobremente por ela". Mas Holden insiste que quer ser apenas um "apanhador no campo de centeio", e simbolicamente salvar as crianças de "uma queda do penhasco" ( a exposição aos males da vida adulta). 
No meio da noite, ao acordar com o professor tocando sua cabeça de um jeito que considera esquisito, ele decide que é hora de partir.  
Num novo encontro com a irmã, quando a leva a um Zoológico no Central Park,  o jovem tem um insight sobre sua vida. Enquanto ela anda no carrossel, ele finalmente percebe que  não pode ser o "apanhador no campo de centeio",  Na verdade, ele, sim, precisa de ajuda.
Uma das mais marcantes obras da literatura norte americana contemporânea, esta obra foi eternizada como o livro de uma geração inteira e transformou seu autor numa lenda, fato que não lhe agradou nem um pouco. Depois de vender 15 milhões de exemplares e virar uma celebridade mundial, Salinger - extremamente tímido e avesso à exposição -  isolou-se em uma casa no topo de uma montanha. Publicou muito pouco desde então, não concede entrevistas, não se deixa fotografar e nunca permitiu que seus livros fossem adaptados para o cinema. Em dezembro de 1997,  aos 78 anos, lançou seu quinto livro, Hapworth 16, 1924, o primeiro em 34 anos.

Traduzido para diversos idiomas, "O Apanhador no Campo de Centeio" é considerado um clássico contemporâneo, com cerca de 250,000 cópias vendidas todos os anos. Em 2005,  foi incluído na lista da Revista Times dos cem melhores romances da língua inglesa escritas desde 1923. A Modern Library e seus leitores também o classificaram como um dos cem melhores livros da língua inglesa do século 20. Infelizmente, ainda tem gente que lembra dele apenas por causa do assassinato de John Lennon.