Um dos maiores pensadores de seu tempo e grande expoente do
existencialismo ateu, Jean Paul Sartre
(1905-1980) defendia que a existência
precede a essência, e, que, portanto, cada homem é responsável por seus atos. Para
alguém que sempre pregou a não influência da natureza ou mesmo de Deus nas
ações humanas, encarar uma gradativa decadência física e intelectual chega a
ser uma ironia. E foi o que Sartre viveu
em seus últimos dez anos, aos quais temos acesso através do minucioso, rascante,
dolorosamente sincero e por vezes indiscretamente cruel testemunho de sua
companheira de uma vida inteira, a também filósofa Simone de Beauvoir.
Publicado em 1981, um ano após a morte de Sartre, “A Cerimônia
do Adeus” traz um relato de seus últimos anos, acompanhados de
suas próprias reflexões sobre a velhice, a decadência física e intelectual e a
finitude da vida.
Enquanto a primeira parte do livro se baseia no diário pessoal da
autora, com registros de inúmeros episódios de evolução da senilidade de
Sartre, a segunda parte, com uma série de entrevistas que ela realizou com ele em
1974, parece pedir que nos lembremos do filósofo por suas ideias, estas sim,
perenes.
“É então a cerimônia do adeus?” – disse-me Sartre quando nos separamos
por cerca de um mês, em princípios de um Verão. Compreendi então o sentido que
teriam um dia essas suas palavras. A Cerimônia durou dez anos e são esses
mesmos anos que descrevo neste livro.”
Tendo formado o casal mais influente da intelectualidade no século XX, Simone
e Sartre criaram uma relação amorosa absolutamente fora dos
padrões para a época – embora sempre
juntos nunca se casaram oficialmente. Mais que uma união, tinham um pacto: - Jamais
esconder nada um do outro. Nunca foram fieis fisicamente – ambos tinham seus
amantes, mas jamais se separaram. Apesar das incontáveis aventuras dele (que
embora feio e vesgo, atraía belas e jovens mulheres pela sua genialidade) e das inúmeras
paixões dela, entre as quais a mais famosa pelo escritor norte-americano Nelson
Algren.
Mais do que parceiros intelectuais pode-se dizer que eram cúmplices. Uma
ligação que nem sempre foi ética (após a morte de ambos a correspondência trocada
entre os dois revelou que partilhavam as mesmas amantes e nem sempre eram
delicados nos comentários sobre as mesmas). Seguiam a máxima do existencialismo
“se você me ama, não me ame”, preservando a liberdade de ambos.
Não se pode negar, porém, que constituíram uma parceria poderosa e quase imbatível, um contribuindo para o crescimento do outro.
Não se pode negar, porém, que constituíram uma parceria poderosa e quase imbatível, um contribuindo para o crescimento do outro.
Convicta da missão que um intelectual tem como testemunha de sua época (é
preciso contar tudo, escrever tudo), Simone decidiu, a partir do diário que manteve
durante uma década, publicar uma obra sobre o que ela chamou de “o fim de
Sartre”. Um fim patético para aquele que foi um dos mais respeitados intelectuais de seu tempo.
Tendo partilhado com Sartre seus escritos ao longo de uma vida inteira,
deve ter sido de forma dolorosa que Simone escreveu o prefácio de seu livro “
Cerimônia do Adeus”, em que anuncia
ser este “ o único certamente que você
não leu antes que o imprimissem. Embora todo dedicado a você, ele já não lhe
concerne”. Ao escrevê-lo, coerente com seus princípios ela dirige-se a
Sartre, sabendo que fala para “o nada”. “Esse
você que emprego é um engodo, um artifício retórico. Ninguém me ouve; não falo
com ninguém.”
“Você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que
me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma
passagem”. Uma constatação
melancólica para alguém que sempre acreditou que a vida é uma só – aqui e agora
- e não tem continuidade.”
“Uma noite de
sábado, jantamos com Sylvie no Dominique, e Sartre bebeu muita vodca. De volta
à minha casa cochilou e depois dormiu de vez, deixando cair seu cigarro.
Ajudamo-lo a subir
a seu quarto. No dia seguinte, pela manhã, pareci em perfeito estado e foi para
sua casa. Mas, quando às duas horas, desceu para almoçar, ele esbarrava em
todos os móveis.”
Ao relatar os últimos anos de Sartre, Simone teve o cuidado de ser o
mais sincera possível, não escondeu nem floreou episódios. Ateve-se a contar os
fatos como aconteceram. Mantendo-se fiel à memória, registra um episódio em que Sartre queixa-se de “seu entorpecimento
mental, com uma espécie de
ingenuidade
encantadora": "Não estou bobo. Mas estou vazio."
Há trechos muito respeitosos e comoventes quando, aproximando-se do fim,
o próprio Sartre admite em uma conversa com Simone que “é preciso ser modesto quando se é velho”. Ou
quando Sartre divaga sobre quanto tempo viverá “Não passarei dos setenta” (morreu aos 75). Há por
outro lado capítulos, extremamente cruéis como os relatos de seu descontrole
com a bebida e o fumo; os abcessos que o levaram a perder os dentes. A
progressiva falta de memória e a incontinência urinária.
“Em Paris, na minha
casa, no início de outubro, quando Sartre se levantou de onde
estava sentado,
para ir ao
banheiro, havia uma mancha em sua poltrona”.
“ Inevitável, a morte já estava presente, Sartre lhe pertencia. Minha angústia difusa transformou-se em desespero radical.”
Inexoravelmente chega a hora do adeus:
“Às nove horas, o
telefone tocou. Ela me disse: "Terminou." Fui para lá com Sylvie. Ele
estava igual a ele mesmo, mas já não respirava. Sylvie avisou Lanzmann, Bost,
Pouillon, Horst, que vieram logo. Permitiram que ficássemos no quarto até cinco
horas da manhã. Pedi a Sylvie que fosse buscar uísque e bebemos, falando sobre
os últimos dias de Sartre, e das providências a tomar.”
Sozinha com Sartre inerte na cama do hospital, Simone deita-se sobre o lençol para passar uma última noite
com ele. “Estava mais ou menos anestesiada por valium e gida em meu desejo de não
desmoronar. Dizia a mim mesma que era exatamente o enterro queSartre desejava e
que ele não o saberia.”
Foi então que ela escreveu na mente a última frase do livro, que se tornaria o epitáfio de seu
ídolo, parceiro e cúmplice. "Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá.
Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto
tempo."
Publicada um ano após a morte do filósofo, a obra
traz como dedicatória: “para aqueles que
amaram Sartre, que o amam, que o amarão.”
Existem várias maneiras de ver a obra A Cerimônia do Adeus, último livro que Simone publicou em vida (ela faleceu sete anos depois). Com horror, com espanto, com indignação ou com ternura e admiração. Podemos considerá-la uma homenagem sincera a Sartre ou uma despedida cruel da maior parceira de sua vida, a quem ele chamava carinhosamente de Castor. Porém não há como ignorar a coragem da autora de ultrapassar os limites de seu papel de escritora. O que não faria Beauvoir se vivesse hoje, em tempos de internet, em que não há mais barreiras intransponíveis - e tudo pode ser visto, ouvido, lido, em tempo real?
Existem várias maneiras de ver a obra A Cerimônia do Adeus, último livro que Simone publicou em vida (ela faleceu sete anos depois). Com horror, com espanto, com indignação ou com ternura e admiração. Podemos considerá-la uma homenagem sincera a Sartre ou uma despedida cruel da maior parceira de sua vida, a quem ele chamava carinhosamente de Castor. Porém não há como ignorar a coragem da autora de ultrapassar os limites de seu papel de escritora. O que não faria Beauvoir se vivesse hoje, em tempos de internet, em que não há mais barreiras intransponíveis - e tudo pode ser visto, ouvido, lido, em tempo real?
Apesar de questionável para alguns e embora atroz em
muitos momentos, ao descrever Sartre com
toda a sua fragilidade - cambaleando,
esquecido, ausente - Simone acabou criando uma obra admirável
sobre a finitude da vida. Uma constatação de que nada é definitivo. Nem a vida,
nem o poder, nem a glória. Nem mesmo Sartre e Beauvoir.
GÊNIAL.
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