sexta-feira, 12 de abril de 2013

Livro 103: A Hora da Estrela (Clarice Lispector)

Publicado em 1977, pouco antes da morte da autora, A Hora da Estrela de Clarice Lispector tornou-se um clássico da literatura brasileira. Oculta sob a figura de um narrador, identificado como Rodrigo S. M., Clarice divaga sobre o fazer literário, enquanto fala das aventuras de uma jovem nordestina tentando sobreviver na cidade grande. Compõe, assim, uma das personagens mais ricas e complexas de sua carreira.
Logo de início antes mesmo das palavras, o narrador confessa: quer escrever uma história “com começo, meio e gran finale, seguido de silêncio e de chuva caindo.” Quer contar a história “verdadeira, porém inventada de uma moça numa cidade toda feita contra ela.”


Denota-se em suas palavras a onipotência de um deus. É ele, o autor, quem dá ou tira a vida. A história, o personagem, a ação só existem a partir dele e com ele: “Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido”.
Rodrigo S. M. (ou Clarice) não escreve apenas para contar uma história. Escreve para se livrar da angústia que a personagem exerce sobre ele. Escreve para se libertar – ou antes, para se redimir. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever.”
 Ele precisa contar a história dessa moça nordestina. Ele precisa contar a história dessa moça que não tinha história. “Preciso falar desta nordestina senão sufoco. Ela me acusa e meio de me defender é escrever sobre ela.”
Como um desejo urgente, ele quer escrever sobre essa moça porque acha que é sua “obrigação” revelar-lhe a vida. “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.”
Escrever é sua maneira de se redimir. Mas que culpa tem o autor por essa moça existir?

Num exercício de metalinguagem Clarice/Rodrigo reflete sobre a produção da obra. Cada aspecto da narrativa é discutido com o leitor.
Como escrever uma história que ainda não existe? “Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais.” ‘Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar escrito em mim.’
Com amor ou com desprezo, ele fala da moça, que vira de relance numa rua do Rio de Janeiro e cuja história ele descobre ao mesmo tempo em que a escreve. Eis a mensagem: ele também se lê. “Se a história não existe passará a existir.”
No início do relato, a moça, que nascera “lá no sertão de Alagoas, onde o diabo perdeu as botas”, nem nome tem. Levará algumas páginas para que  ela mesma o revele a um possível namorado.
A história brota em imagens mais do que palavras, na mente do escritor. É Clarice em sua forma mais bruta, debruçada sobre um tema inexplorado, a amargura do sertanejo em busca de vida.
Vamos a ela, a moça, nas palavras do narrador: “A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para as pessoas na rua.”
A moça é nordestina. Mais do que nordestina, alagoana. Raquítica, herança do sertão, órfã desde os dois anos de idade, “não sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor.”
 “Ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás, eu descubro agora também eu não faço a menor falta.” (Momento em que narrador e personagem se unificam)
Então algo mais se revela, ao autor, que nada sabe: a moça é datilógrafa – ou ao menos fez um curso, com a ajuda da tia que a criara após a morte dos pais. A tia cuja noção de educar era lhe dar cascudos fortes na cabeça. E ser datilógrafa concedera um status paraela, que nada tinha. Como frisa o autor: “ela não tinha”.
Tomado de sentimentos pela jovem, ele quer cuidar dela, lhe dar carinho. Quer compreendê-la. Mas no fundo, quer ser, ele mesmo compreendido.
Já no Rio de Janeiro, quando a morte lhe rouba a tia, a moça se vê às voltas com a obrigação de (sobre)viver. Consegue emprego numa firma representante de roldanas. Incompetente que era, quando seu chefe ameaça demiti-la, sem ter o que dizer, pede desculpas. Essa moça, diz o autor, pede desculpas por existir.
Morando numa pensão com mais quatro Marias, seu único lazer é ouvir todas as noites a Rádio Relógio, que dá hora certa, cultura e nenhuma música. Solidão extrema.
Todos os dias iguais, ela acordava sem existir. “só então vestia-se de si mesma e passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.” “Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte – já que sou o jeito é ser.”
Num dia em que falta ao trabalho para passear (primeiro ato de rebeldia) a moça nordestina encontra Olímpico de Jesus. Chovia muito quando ele se apresentou como “metalúrgico” e a chamou de “senhorinha".
É quando finalmente a personagem ganha nome.
- Qual a sua graça? – ele pergunta. Ao que ela responde: - Macabéa.
Ele se espanta: - Me desculpe, mas parece nome de doença. Doença de pele.
Agora autor e leitores já sabem quem é a moça que veio de Alagoas tentar a sorte no Rio de Janeiro. Ela se chama Macabéa e tem um namorado.Um namorado que nem sempre aparece no ponto de ônibus, que a chama de magricela esquisita, mas mesmo assim, um namorado. Olímpico, “que besuntava o cabelo preto até encharcá-lo (de vaselina)”.
Que matara um homem, nos cafundós do sertão.  E tinha uma mania estranha de frequentar enterros de desconhecidos (e chorar copiosamente).
Olímpico, o metalúrgico, fala palavras bonitas e tem a ambição de um dia ser “rico e deputado”. “Ele falava coisas grandes, mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria.”
“Ela disse:
 - Eu vou ter tanta saudade de mim quando eu morrer.”
A Macabéa de Clarice é uma metáfora sobre a simplicidade dos que nada sabem. 
No segundo dia em que Olímpico encontra Macabéa, está chovendo.
- Você só sabe mesmo é chover.

O jeito de Macabéa impressionar o pretendente era exibir seus conhecimentos adquiridos na Rádio Relógio:
 - Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita: mimetismo. 
Olímpico a olha desconfiado.
- Isso é lá coisa para moça virgem falar? E para que serve saber demais?”

- Olhe, eu vou embora porque você é impossível.
- É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível?
E eis que numa visita a Macabéa no escritório, Olímpico conhece sua colega Glória, sensual e cheia de carnes. O namoro com Macabéa “entrara em rotina morna, se é que alguma vez haviam experimentado o quente”. Olímpico percebe que Glória sendo loura (oxigenada, mas loura) e filha de açougueiro, combinava mais com ele. “Gloria possuía no sangue um bom vinho português e também era maneirada no bamboleio do caminha por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca tinha em si a força da mulatice. E tinha uma vantagem que nordestino não pode desprezar: era carioca”.
Assim termina, segundo o autor, o namoro entre Olimpico e Macabéa. “Namoro talvez esquisito, mas pelo menos parente de algum amor pálido.” Macabéa já havia percebido o que houve com Olímpico e Gloria: “ os olhos de ambos se haviam se beijado.” No dia seguinte, a moça decidiu dar uma festa para si mesma. Comprou um batom vermelho “vivante”.
No banheiro do escritório, ela pintou a boca toda, até fora dos contornos para que os seus lábios finos parecessem os de Marylin Monroe. Glória riu.
Nas palavras do autor, Macabéa inexiste, sendo enxergada por poucos, como seu patrão, que não a demite por pena. Como Glória, que lhe pergunta se “ser feia dói” ou Olímpico, que a define como “um cabelo na sopa.”
Com remorso por roubar seu namorado, Glória lhe indica uma cartomante sua conhecida. Quem sabe ela resolveria sua vida?  
Madama Carlota, que revela ter sido mulher da vida, conversa com Macabéa no diminutivo: 
- Vocezinha tem medo das palavras, benzinho?
- Corte as cartas minha adoradinha.
“Macabéa separou um monte com a mão esquerda: pela primeira vez ia ter um destino. Madame Carlota (explosão) era um ponto alto em sua existência”.
É quando a cartomante anuncia em seu futuro o encontro com um homem “estrangeiro de olho verde ou azul ou castanho ou preto”, que lhe daria uma vida de luxo e amor. Um louro de nome Hans, muito rico, pois “todos os gringos são ricos.”

“A cartomante lhe decretara uma sentença de vida”.
Como num conto de Machado de Assis, a moça sai da cartomante, “grávida de futuro”. Enorme como um transatlântico, vem o Mercedes Benz amarelo que a atinge. Ela bem que nota: é um carro de luxo. E o sangue que brota em sua cabeça também é vermelho rico.
O narrador avisa: “Não falei nem falarei em morte, mas atropelamento”.
E se debate quanto ao destino da moça. “Não sei se ela vai morrer.”
Os transeuntes se reúnem em torno de Macabéa, que se torna, pela primeira e última vez na vida, o centro das atenções. “As pessoas a espiavam, o que lhe dava uma existência”.

É sua hora de estrela, em que ela vai ser "tão grande como um cavalo morto".  “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci”.
 “Então começou levemente a garoar. Olímpico tinha razão, ela só sabia era chover”.
Percebe-se a dificuldade do autor (Rodrigo? Clarice?) de se despedir de Macabéa. É dele o poder de lhe dar vida ou morte.
“Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina infante, mas quero o pior: a vida”.
O autor divaga sobre o destino da menina, mas este já estava escrito desde que ela nascera. Faltava pouco para se cumprir e cumpre-se em palavras:
“Morrendo ela virou ar”.
Em A Hora da Estrela, como em todo romance de Clarice o que sobressai é a narrativa, é o encadeamento das palavras, a crueza da escrita, visceral, pungente, mais do que a história em si. Metáfora da simplicidade dos que nada sabem, o que Macabéa tem de mais precioso não é sua curta vida, mas a marca que ela carrega, as histórias que não teve tempo de contar. Porque nem chegou a ter tempo de ser.
Finalizando a história/vida de Macabéa, só resta ao autor “acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora lembrei que a gente morre.”

É Clarice encerrando, magistralmente, o último livro de sua vida.

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