domingo, 14 de abril de 2013

Livro 105: Flores Raras e Banalíssimas (Carmen L. Oliveira)


Quem passa pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro de hoje, talvez não imagine que por trás desse "inusitado" parque à beira-mar, qie abrigam entre outras atrações, o Museu de Arte Moderna, existe o dinamismo e a obstinação de uma mulher: Carlota de Macedo Costalatt Soares, a Lota. 
Uma figura que, contra todos os preconceitos machistas da época, conseguiu a proeza de comandar um grupo de renomados profissionais (incluindo o paisagista Burle Marx e os arquitetos Sergio Bernardes e Afonso Reidy), enfrentando obstáculos e  derrubando “mesquinharias políticas” para realizar seu sonho de concreto. 

Em Flores Raras e Banalíssimas, a escritora Carmen L. Oliveira desvenda o mundo de Lota nas décadas de 50 e 60, quando ela participa da construção do Parque do Flamengo, ao mesmo tempo em que vive uma história de amor com a premiada poetisa norte-americana Elizabeth Bishop.



Recorrendo a diários, ofícios e cartas de ambas, Carmen compõe um texto que mistura biografia com diálogos imaginários, recriando situações e dando voz não apenas a Lota e Bishop, mas também a personagens impagáveis como um grupo de espevitadas velhinhas amigas da brasileira, que já nos anos 90, com comentários à boca pequena, revelam detalhes da relação entre as duas, comparando a exuberância de Lota com “as esquisitices da gringa”.
Mas o livro não se resume a mexericos. Revela-se um registro valioso sobre como uma mulher, em plenos anos 60, e sem formação superior em arquitetura, esteve à frente da construção de um parque monumental, dedicando literalmente seus últimos anos de vida à realização desta obra.
Uma figura ímpar, tenaz, inteligente, revolucionária que se valia de um gênio indomável e fama de mandona para conseguir (quase) tudo o que queria.
Amiga do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (que lhe dera carta branca na execução do projeto), não tinha pudor em interferir em suas decisões, nem de lhe fazer críticas em tom mal- humorado – Carlos, não seja idiota! – sempre que discordava de suas posições.
Elizabeth Bishop, ao contrário, é pintada por Carmem como uma mulher insegura, “sem graça” que volta e meia recaía no vício do alcoolismo tendo que ser monitorada e cuidada pela companheira. Não que ela fosse exatamente inexpressiva. Respeitada e laureada em sua pátria natal, recebeu o prêmio Pulitzer em 1956, pela obra “North & South”. Mas no Brasil era mais conhecida como a companheira de Lota.




O livro não segue uma ordem cronológica exata, intercalando as décadas de 50 e 60, tempo que durou o romance, com trechos de memórias de Bishop e passagens dos anos 90, com os irresistíveis testemunhos das amigas de Lota que recordam sua personalidade, sua relação com Bishop, e os motivos que a levaram a desistir da vida em 1967.
Entre 1951 e 1967, enquanto Lota Macedo se envolve com Elizabeth Bishop e abraça a causa da concepção e construção do parque do Flamengo, o Brasil vive a bossa-nova, a inflação, a queda de Getúlio, a ascensão e derrocada de Carlos Lacerda, e o advento do Golpe Militar. Turbulências no país e na relação entre as duas.
Mulher culta, refinada, frequentadora das altas rotas de artistas e intelectuais, e arquiteta autodidata, Lota também era considerada uma pessoa da pá virada, que vivia de acordo com suas ideias.
Foi em sua moderna casa, que construiu com o amigo Sergio Bernardes, encravada na mata de Samambaia, Petrópolis, que ela recebeu Elizabeth Bishop, que na época passava por um período de bloqueio criativo. Era o ano de 1951. Com uma personalidade complicada, cheia de traumas de infância, doenças e o vício do alcoolismo, Elizabeth encontra no Brasil e nos braços de Lota a paz para voltar a escrever. Naquele lugar que ela mesma considerou um paraíso, produziu alguns de seus melhores poemas, muitos com alusão a temas brasileiros. Mas nem tudo são flores (raras ou não). O relacionamento que começa feliz, aos poucos se torna um peso para ambas. Enquanto Lota é dinâmica, decidida e vivaz, Elizabeth é retraída e insegura. Os amigos de Lota não se entrosam com aquela americana achacadiça que, depois de cinco anos no Brasil, ainda não falava português. Enquanto Lota considerava Bishop um gênio, suas amigas a achavam “a imagem da semgracesa”. Até que a brasileira embarca no grande projeto de sua vida, a construção do Parque do Flamengo. Se dividindo entre Petrópolis e o Rio, Lota enfrenta os mais diversos embates, movendo mundos e fundos e se indispondo com poderosos para realizar o projeto. Entre outras desavenças, rompe publicamente com Burle Marx, ambos expondo suas divergências em notas nos jornais.
A obra que consome sua vida também a afasta de Elizabeth, que sentindo-se solitária e preterida, em vários momentos volta a afogar as mágoas na bebida.
Para superar o vazio, embarca para os EUA para dar aulas em uma universidade, no momento em que Lota vive os maiores impasses, alvo de críticas inclusive na imprensa. Na América, envolve-se com uma jovem aluna, que se dedica a ela de forma apaixonada.
Em 1967, com o parque já concluído, Lota é afastada da Fundação que iria administrá-la. Nada mais lhe resta senão seguir ao encontro de Elizabeth para tentar retomar a ligação. Está deprimida e com a saúde abalada.
Na mesma noite em que chega, após uma longa conversa, as duas vão dormir exaustas. Horas depois, Elizabeth acorda com um barulho na cozinha, chegando a tempo de amparar Lota que cai em seus braços com um vidro de Valium vazio. Ela entra em um coma do qual não mais desperta. Um telegrama para o Brasil traz a triste notícia para os amigos.



Elizabeth Bishop

No desamparo de uma e de outra, tanto Elizabeth quanto Lota tem razão em sua dor. Há quem diga que Bishop abandonou a companheira quando ela mais precisava de apoio.E há quem pense que Lota a deixara de lado para conduzir o projeto de sua vida. Nas páginas finais do livro, uma das amigas de Lota afirma que Bishop provocou sua morte. Outra assegura que quem matou Lota foi o Parque do Flamengo. Talvez ambas estejam certas.
Em sua delicadeza, Flores Raras e Banalíssimas não é um livro sobre homossexualismo, feminismo nem tem a pretensão de levantar qualquer bandeira.
É antes de tudo um livro sobre amor, entrega e obsessão. Sobre a força de um sonho ou sobre a fragilidade humana. Um livro sobre Lota e Elizabeth, cada qual com sua fraqueza, unidas pelo mesmo sentimento que mais tarde as separou.


FLORES RARAS E BANALÍSSIMAS
ED. ROCCO
CARMEN L. OLIVEIRA

1998

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde foi publicado pela Rutgers University Press, o livro de Carmem Oliveira foi muito bem recebido, tendo conquistado os prêmios Stonewall Book, da American Library Association, e Lambda Literary Award. Mas a sua maior contribuição foi resgatar a figura de Lota Macedo num momento ímpar da história do Rio de Janeiro.

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