terça-feira, 2 de abril de 2013

Livro 92: As Memórias da Emília (Monteiro Lobato)

O maior escritor infantil brasileiro, Monteiro Lobato criou um mundo de imaginação no qual várias gerações viajam, desde a década de 40.
Foi da mente fértil do autor que nasceram personagens célebres como a doce vovó Benta, a assustada Tia Nastácia, o sábio Visconde de Sabugosa, feito de sabugo de milho e a boneca de pano Emília, que "destrambelhou a falar" após tomar as pílulas do Doutor Caramujo. 
Com o Sítio do Pica Pau Amarelo, Lobato inaugurou um tempo em que as crianças já não eram tratadas como seres sem opinião, visto que no sítio da Dona Benta, elas eram ouvidas e respeitadas, e suas fantasias, levadas a sério: Lucia, a menina do nariz arrebitado e seu primo Pedrinho viviam ali as mais fantásticas aventuras e suas histórias marcaram a vida de milhares de crianças brasileiras.
Sem dúvida, o personagem mais marcante de Monteiro Lobato é a boneca Emília, apontada por muitos como o alter ego do inquieto autor. Era pela boca da Emília que ele tinha licença poética para revelar suas mais ousadas opiniões sobre o país e o mundo na época com todo o seu espírito crítico, mordaz e implacável. Geniosa e impertinente, Emília, segundo o escritor, tinha tanta personalidade, que quando ele sentava-se para escrever, ela postava-se ao seu lado e dominava sua mente. Nada mais justo do que acreditar que foi assim que nasceu o livro “As Memórias da Emília”.
Publicado em 1936, a obra começa quando a boneca decide contar suas memórias, ou melhor,  "mentir" as memórias pois, segundo ela, quem escreve sobre si próprio "tem um pé" na enganação. Afinal, a vida como ela é, não tem nada de interessante.
Assim, a boneca, “no maior assanhamento” pede ao Visconde de Sabugosa que seja seu “secretário”. Ela ditaria pra ele escrever.
Folgada, como ela só, após ditar algumas linhas sobre seu nascimento, a boneca diz ao Visconde que continue escrevendo sozinho: “Faça de conta que eu estou ditando”.
O sábio decide então lhe pregar uma peça: "Vou escrever uma coisa e quando ela voltar e me mandar ler, eu pulo o pedaço ou leio outra”. Assim o fez, escrevendo coisas não muito elogiosas, como: “Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada”.
“Também é a criatura mais interesseira do mundo. Só pensa em si, na vidinha dela, nos brinquedos dela.”
Quando a boneca retorna e lê o que o Sabugo escreveu, mesmo irritada, conclui que o Visconde estava certo: Mas, pensando bem, vejo que sou assim mesmo".
Ela resolve então manter o texto do Visconde como as Memórias da Emília parte I. E passa a escrever a segunda parte, cheia de aventuras. 
Entre as histórias da boneca está o episódio do Anjinho de Asa Quebrada que caiu do céu (mas na verdade fora raptado por Emília) e a visita das crianças inglesas.
“Descemos todos e com grande espanto Dona Benta viu que Emília tinha trazido o anjinho da asa quebrada que descobrira muito triste da vida lá entre as estrelas. Ninguém descreve o rebuliço que houve na casa (...) E havia razão para isso, porque jamais descera ao mundo uma criatura tão mimosa.”
Adotando o anjinho que caiu do céu, Emília resignifica o saber a partir de sua visão de mundo, explicando a vida para o angelical visitante:
“Árvore – dizia – é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; que em vez de braços tem galhos; que em vez de unhas tem folhas; que em vez de andar, falando da vida alheia e se implicando com a gente (como os tais astrônomos) dão flores e frutas.”

Em Memórias da Emília, a inovação fica por conta do uso de três narradores diferentes: a boneca, o Visconde de Sabugosa e um narrador central. O que não falta nas histórias da boneca são personagens célebres da literatura, como o Capitão Gancho, Alice, Peter Pan e o marinheiro Popeye, num exercício de intertextualidade, ou referências ao cinema da época, como Shirley Temple e a Paramount.
Embora a obra esteja repleta de fantasia, o contexto da narrativa é bastante comum e se aproxima ao vivido por muitas crianças: um sítio e a figura de uma avó. Ainda que sejam fantasias, são vividas num ambiente real, transformado em mágico pela imaginação das crianças.
Como diz Emília “acho que o único lugar no mundo onde há paz e felicidade é no sítio da Dona Benta. Tudo aqui corre como num sonho. A criançada só cuida de duas coisas: brincar e aprender. As duas velhas só cuidam de nos ensinar o que sabem e de ver que tudo ande a hora e a tempo.”
A boneca também não perde a oportunidade de filosofar sobre a vida:
“A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim, pisca a última vez e morre.
E depois que morre? – perguntou o Viscode,
Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve que concordar que era.”
Depois de nos divertir com aventuras e pensamentos tão intrigantes, Emília conclui suas memórias com a irreverência que lhe é peculiar:
 “Respeitável público, até logo. Disse que escreveria minhas Memórias e escrevi. Se gostaram delas muito bem. Se não gostaram, pílulas. Tenho dito”.

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