segunda-feira, 25 de março de 2013

Livro 84: Alice e Ulisses (Ana Maria Machado)

O primeiro parágrafo já é um jogo de palavras que sibilam, remetendo a seu nome-sussurro: Alice. E já se prenuncia a vertiginosa viagem a que nos conduzirá a autora nesse caso de amor contemporâneo. Percebe-se um mergulho, um salto sem paraquedas, um voo no escuro. “Aliciada ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a lucidez, nem mesmo na alegria inicial do cio, por mais variadas que tenham sido os desvairados desvãos e deslizantes desvios.”

É dessa forma que Alice invade a vida de Ulisses, o outro. E a vida do leitor.
Primeiro romance para o público adulto da escritora e jornalista Ana Maria Machado, "Alice e Ulisses", publicado em 1983, já anunciava insuspeitado poder de sedução oculto por trás das histórias infantis nas quais ela reinava (e continua reinando, décadas depois).
Quando Alice, professora, descasada, conhece Ulisses, cineasta, casado, o que se segue é uma viagem pelo mundo da paixão, recheada de referências cinematográficas, enquadramentos sutis, citações poéticas e trechos de contos de fadas. Tudo para tecer o fio da meada que conduz à relação tempestuosa, voraz e intensa de Alice e Ulisses.  
Retrato de uma época, “Alice e Ulisses” trata de um amor contemporâneo, em tempos de ditadura, nos quais a mulher ainda estava presa a estereótipos e o homem  (como sempre) se dividia entre aventuras extraconjugais e as bases sólidas de um casamento de aparências. Num tempo em que a relação homem-mulher ainda era cheia de arestas, com homens que podiam tudo e mulheres que pediam nada, a autora exerce sedução desde a primeira página, onde o encontro amoroso já está presente. E a poesia também.
Trata-se de um caso de amor, contado de um só fôlego, em exatas 113 páginas, num paralelo entre duas personagens universais, a destemida Alice (de Lewis Carrol), "capaz de mergulhar em tocas e viver aventuras" e o bárbaro conquistador Ulisses (de Joyce, releitura do Ulisses de Homero), em sua odisseia particular.  Só da mente de uma sagaz autora e contumaz leitora, amante dos clássicos, sairia esse inusitado casal, cujos nomes rimam – como bem assinala uma personagem do livro, o bruxo Augusto, que os une - reúne.
É num evento de cinema que Alice, mulher moderna "que acha coquetel um pé no saco” e sempre “se esquece de pegar o guardanapo de papel para  limpar a mão”, conhece o cineasta Ulisses, que se encanta com a figura exótica “de cabelo solto e um imenso xale de velha siciliano, indeciso entre escorregar e enrolar os ombros”. Não se desgrudam mais. Entre os anos 70 e 80,  vivem uma paixão atemporal, ilícita e ao mesmo tempo livre. 
Bem que ela devia “desconfiar que o nome de Ulisses já indicava sua maneira de ser, saqueador de cidades, astuto e ardiloso, viajante e explorador.” Mas Alice, que tinha  “total disponibilidade para mergulhar em tocas pela terra adentro",  paga pra ver.
O romance é entremeado por citações de contos de fadas, trechos de poemas e cenas de filme. Ela cita versos, ele enquadra-a em imagens. Ela sabe onde pisa, ele se enreda, sem controle. “Foi duro aprender que quanto mais fosse amada mais ia ser dominada.” Mas Alice não é mulher de se dominar. Conhece os scripts, os lugares comuns do roteiro. Ela sabe como a história termina. Todos os personagens dele, ou matam ou morrem. “Você vai me matar.”
Quando Alice está cada vez mais envolvida numa relação na qual não é só Ulisses quem perde a razão, surge em seu caminho Adélia, a esposa (do grego Adelo, invisível). É a Penélope de Ulisses (ou Molly, de Joyce) entrando em cena.
"E, Deus do Céu, lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia do lar, muito arrumada nos cabelos pintados e penteados em cabeleireiro". E uma inusitada proposta fará nossa protagonista repensar todo o roteiro.
É justamente Adélia, tão tradicional, tão antiquada, tão Amélia, quem trará uma alerta a Alice: - A vida não é um conto de fadas, minha filha. 
Numa linguagem sutilmente cinematográfica, Alice, que também é cinéfila, descobrirá qual será seu script.


Um aviso. É interessante ler a Odisseia de Ulisses para compreender ainda melhor os desvãos (e o desfecho) dessa paixão.

Alice & Ulisses 

Ana Maria Machado
96 páginas
Editora: Nova Fronteira

Jornalista, artista plástica, escritora, Ana Maria Machado escreveu mais de 100 livros para crianças e adultos.  Conquistou o prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Prêmio Nobel da LIteratura Infantil mundial. Em 2001, a Academia Brasileira de Letras lhe concedeu o maior prêmio literário nacional, o Machado de Assis, pelo conjunto da obra. É Presidente da Academia Brasileira de Letras.

Esse livro tem que ter uma menção especial. Além de ser minha prima por parte de pai (filha da minha tia avó Dinah e de Mário Martins, senador), é uma referência para mim. Uma bela mulher, culta, bem-sucedida que tem milhares de histórias para contar. E que por isso se tornou, não apenas uma das melhores escritoras de livros infantis do país, como excelente autora para todas as idades. Li Alice & Ulisses quando ainda estava na Faculdade, era um livro inovador, com uma linguagem moderna, ousada, intensa, bem ao estilo da época. Encantei-me com essa estreia da Ana Maria na literatura para adultos. E hoje, relendo a obra, continuo encantada.


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