sábado, 2 de março de 2013

Livro 61: Apontamentos de História Sobrenatural (Mário Quintana)


Segundo a sobrinha neta Elena, que foi sua secretária por décadas, Mário Quintana costumava duvidar de que iria viver muito. Aos 30, achava que não passaria dos 40. Aos 50, não chegaria aos 60. E como foi ficando, parou de fazer afirmações “para não ficar repetitivo.” Pois Quintana viveu 87 anos como se fosse um menino. De alma, gestos e sentimentos. E como produziu, o garoto. Nascido em 30 de julho de 1906, na cidadezinha de Alegrete, começou a escrever muito cedo e trabalhou em jornais a vida inteira. Além disso, fazia traduções – foram mais  de 130 ao longo da vida, passando por obras de Voltaire, Virginia Woolf, Proust, Balzac. Para Quintana, ser poeta era um vício e não uma profissão
Publicou seu primeiro livro, A rua dos cataventos, em 1940, aos 34 anos. A obra se diferenciava por apresentar sonetos tradicionais, quando a literatura brasileira já havia sido chacoalhada pelo Modernismo de 1922. Sua aparição em terreno nacional aconteceria apenas em 1966 com sua Antologia Poética, organizada por Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. Considerado "o poeta das coisas simples", com versos marcados pela ironia, Quintana recusava qualquer tipo de rótulo, para si ou para sua poesia, que pretendia livre de escolas e modismos literários. Ao contrário de seus contemporâneos, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, não fazia poesia social. Buscava o lirismo tradicional, com um toque de espontaneidade, o olhar atento sobre coisas pequenas e emoções simples. Afirmava que sua poesia era feita unicamente para atender a sua necessidade de escrever. Até que tentou flertar com os contos, mas nunca se sentiu à vontade com a prosa, com exceção da prosa poética. Dizia ele: “Bem que eu gostaria de escrever contos. Mas isso de enredo me parece uma coisa para comadres...” Sua produção ocupou o terreno do indefinível, inclassificável, cabendo aos críticos literários a difícil tarefa de enquadrá-la em uma ou outra escola, o que provavelmente nunca conseguiram.
Quando do lançamento de Apontamentos de história sobrenatural, em 1976, o poeta contava já 70 anos e, ainda que idoso, continuava uma criança, em vivacidade e entusiasmo. O livro, que marcou seu retorno, após dez anos sem lançar uma obra inédita, chama atenção logo no título: “Apontamentos” sugere anotações, notas em caderno escolar, pensamentos de menino. Já “História Sobrenatural” remete a algo transcendente, misterioso.  São 146 poemas numa temática muito própria, que mescla cotidiano, melancolia, nostalgia da infância e reflexões sobre o tempo e a morte. Os poemas apresentam ainda uma grande variedade formal: poemas curtos antecedem outros bastante longos, canções se avizinham a sonetos, tudo se insere no estilo sem estilo do autor. Sobre a obra, disse o poeta: Eis o meu primeiro livro cujos poemas saem mais ou menos na sua ordem cronológica. Porque antes se reuniam numa ordem lógica: sonetos com seus companheiros de lirismo um tanto boêmio, canções com suas irmãs de dança, quartetos filosofando uns com os outros, diante da seriedade que se presume existir num simpósio, poemas em prosa proseando sobre isto ou aquilo, poemas oníricos com suas perigosas magias de aprendizes e feiticeiros.

No poema “De gramática e de linguagem”, 
analisa o fazer poético e mostra o quanto se delicia em construí-lo:

Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas
Escorram
Com a polpa de um fruto maduro
Em tua boca.


Em "O autorretrato", esboça uma análise de si mesmo, 
como quem se enxerga com olhos da fantasia:  

“No retrato que me faço
- traço a traço – às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore (...)


O poeta também recorre a temas como morte e tempo, 
lançando versos doces como:

“O domingo é um cachorro escondido
Debaixo da cama.”

 Em "Interrogações", Quintana divaga sobre a criação divina:

Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é um pergunta do poeta.
E as estrelas...
As flores...
O mundo...
São perguntas de Deus.”

Mário Quintana candidatou-se à Academia Brasileira de Letras várias vezes, sem sucesso. Quando lhe ofereceram a vaga, contudo, recusou. Estava cansado. Sobre o assunto, declarou seu conterrâneo Luís Fernando Veríssimo: "Se Mário Quintana estivesse na ABL, não mudaria sua vida ou sua obra. Mas não estando lá, é um prejuízo para a própria Academia".

O poeta menino Mário Quintana faleceu em 05 de maio de 1994, aos 87 anos. Sua poesia jamais morrerá. Como ele bem o definiu, em um de seus célebres poemas "Eles passarão. Eu passarinho."


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