Muito se comenta desde
1978 sobre o filme A Dama do Lotação, do cineasta Neville d' Almeida, protagonizado
por Sonia Braga. Mas nem todo mundo sabe que o filme se baseia não em um romance, mas num pequeno conto de Nelson Rodrigues inserido num livreto de poucas páginas.
Inicialmente
publicado na coluna diária de Nelson, "A vida como ela é" (1951 a
1961), no jornal Última Hora, o conto é dividido em cinco partes, separadas por
subtítulos. E, mesmo sendo pouco extenso,essa disposição acaba por dar a
impressão de uma mini peça de teatro. É como se em cada parte, devidamente
nomeada, mudassem os cenários e a ação, para deleite da plateia (leitor).
Com seu inegável talento para retratar o cotidiano do homem simples num
cenário tipicamente carioca, também nesse conto o autor descreve a realidade de uma sociedade extremamente machista numa época em que tudo
era reprimido e qualquer mudança de ordem era considerada pecado.
Na história, um
acabrunhado personagem de nome Carlinhos procura o seu pai para desabafar a
respeito de sua esposa Solange.
— Meu pai, desconfio de minha
mulher.
Ao pai estupefato, ele
explica as razões. Diz que a mulher mudara muito nos últimos tempos. E o
sogro, que adorava a nora considera a suspeita um absurdo.
— Imagine!
Duvidar de Solange!
Afinal, o casamento já
durava dois anos e eram felicíssimos. As duas famílias eram muito dignas
e todos que conheciam Solange diziam que ela era “um amor” e “um doce de coco.”
No entanto, nessa mesma noite, a suspeita ganha novas cores quando vai jantar
em sua casa um amigo de nome Assunção. Durante a refeição, Carlinhos se abaixa
para pegar o guardanapo que caíra no chão, e vê, debaixo da mesa, os pés da esposa sobre os pés do amigo. “ O que vira, afinal, parecia pouco, todavia,
essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso”.
A partir daí, o
estado psicológico do protagonista é descrito pelo autor em poucas, mas
certeiras linhas. Dias depois, Carlinhos encontra Assunção na cidade e este menciona ter encontrado Solange
num lotação. Chegando em casa,
pergunta à esposa se tinha notícias do amigo. Ao que ela responde que há tempos não o via.
“Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias”.
“Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias”.
Assoberbado de ciúmes,
o marido se deixa levar pelo impulso e com revólver na mão, interpela a esposa. Cabe ao leitor descobrir por si mesmo o desfecho do conto. Neste texto curto e intenso, Nelson Rodrigues traduz, como lhe é peculiar, a amargura, a crueza dos sentimentos e a sordidez da alma humana,
Numa reflexão atribuída à Solange, a
personagem descobre que “nada mais a espanta”. Da mesma forma, nada que é humano causa espanto ao grande
Nelson Rodrigues. Sorte de seus leitores.
“ Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita”.
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