terça-feira, 19 de março de 2013

Livro 78: A Dama do Lotação e outros contos e crônicas (Nelson Rodrigues)


Muito se comenta desde 1978 sobre o filme A Dama do Lotação, do cineasta Neville d' Almeida, protagonizado por Sonia Braga. Mas nem todo mundo sabe que o filme se baseia não em um romance, mas num pequeno conto de Nelson Rodrigues inserido num livreto de poucas páginas.
Inicialmente publicado na coluna diária de Nelson, "A vida como ela é" (1951 a 1961), no jornal Última Hora, o conto é dividido em cinco partes, separadas por subtítulos. E, mesmo sendo pouco extenso,essa disposição acaba por dar a impressão de uma mini peça de teatro. É como se em cada parte, devidamente nomeada, mudassem os cenários e a ação, para deleite da plateia (leitor).
Com seu inegável talento para retratar o cotidiano do homem simples num cenário tipicamente carioca, também nesse conto o autor descreve a realidade de uma sociedade extremamente machista numa época em que tudo era reprimido e qualquer mudança de ordem era considerada pecado.
Na história, um acabrunhado personagem de nome Carlinhos procura o seu pai para desabafar a respeito de sua esposa Solange.
 — Meu pai, desconfio de minha mulher.
Ao pai estupefato, ele explica as razões. Diz que a mulher mudara muito nos últimos tempos. E o sogro, que adorava a nora considera a suspeita um absurdo.
 — Imagine! Duvidar de Solange!
Afinal, o casamento já durava dois anos e eram felicíssimos. As duas famílias eram muito dignas e todos que conheciam Solange diziam que ela era “um amor” e “um doce de coco.” No entanto, nessa mesma noite, a suspeita ganha novas cores quando vai jantar em sua casa um amigo de nome Assunção. Durante a refeição, Carlinhos se abaixa para pegar o guardanapo que caíra no chão, e vê, debaixo da mesa, os pés da esposa sobre os pés do amigo. “ O que vira, afinal, parecia pouco, todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso”.
A partir daí, o estado psicológico do protagonista é descrito pelo autor em poucas, mas certeiras linhas. Dias depois, Carlinhos encontra Assunção na cidade e este menciona ter encontrado Solange num lotação. Chegando em casa, pergunta à esposa se tinha notícias do amigo. Ao que ela  responde que há tempos não o via. 
“Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias”.
Assoberbado de ciúmes, o marido se deixa levar pelo impulso e com revólver na mão, interpela a esposa. Cabe ao leitor descobrir por si mesmo o desfecho do conto. Neste texto curto e intenso, Nelson Rodrigues traduz, como lhe é peculiar, a amargura, a crueza dos sentimentos e a sordidez da alma humana,
Numa reflexão atribuída à Solange, a personagem descobre que “nada mais a espanta”. Da mesma forma,  nada que é humano causa espanto ao grande Nelson Rodrigues. Sorte de seus leitores.
                                                                  
 “O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro?”

“ Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário