sexta-feira, 22 de março de 2013

Livro 81: A Queda Para o Alto (Herzer)

O livro de hoje não é nenhuma obra-prima, nem mesmo chega a ser uma obra literária, mas sim uma tentativa de desabafo, de se abrir a alma. Talvez por isso mereça ser comentado.Publicado em 1982, após a morte da autora,  Sandra Mara Herzer, "A Queda para o Alto" já surpreende desde o título. Pela linguagem inovadora, pelo relato contundente e desabrido. E por  ter sido escrito por uma jovem, sem estrutura familiar, sem estudo regular, egressa da Febem.  O testemunho comovente e corajoso de uma jovem que, nos ainda atrasados anos 80, assumia sua condição de lésbica ou transexual, e que recusava seu nome de batismo e preferia ser chamada apenas de Anderson, ou Herzer ou Bigode. Longe de uma simples opção sexual, a transição da jovem, que traz uma história de tragédias pessoais, para uma personalidade masculina se dá após o desaparecimento de seu único namorado, apelidado Bigode. Quando este morreu num acidente de moto, aos poucos ela começou a desenvolver o personagem que mais tarde assumiu. Dividido em duas partes, a primeira, autobiográfica e a segunda, contendo poesias, o livro revela uma sensibilidade rara, um talento que não pôde ser lapidado, mas que ganhou voz pelo apoio de pessoas como o então Deputado Eduardo Matarazzo Suplicy, a quem ela dedica o livro, chamando de "Amigo, Companheiro, Mestre Incansável, Pai e Irmão."É dele também o prefácio, no qual conta como se tornou uma espécie de mentor de Sandra, quando a conheceu na sede do Movimento em Defesa do Menor. "Perguntei-lhe sobre sua vida. Li as suas poesias e peças de teatro, algumas das quais haviam sido consideradas as melhores dentre as escritas por todos os menores das Unidades a Febem."Embora a poesia de Herzer seja interessante, sua vida, contada por ela mesma talvez tenha mais impacto junto ao leitor. Uma história sofrida de quem perdeu o pai e a mãe ainda na primeira infância.
“Minha mãe era uma mulher vulgar. Nem minha nem de minha irmã; nem de João, Pedro ou José. De todos e ao mesmo tempo sozinha.”
"Minha mãe saía todos os dias, quando o sol já estava para ir embora.Trancava a porta e nos deixava sós. Rosana chorava muito, talvez de fome.”
A menina que perdeu o pai e a mãe muito cedo, foi criada por uma tia adotiva e por sua personalidade forte logo começou a entrar em desacordo com a família. Aos 14 anos, foi levada para a Febem. Dentro da Unidade de Reintegração, a jovem passa por preconceitos e é rejeitada por sua condição diferente. E apesar da baixa escolaridade, a jovem marginalizada demonstra extrema sensibilidade e encontra na escrita, nos poemas e peças teatrais (que escreve e encena, dirigindo outras menores), uma válvula de escape e um canal de expressão. Aos 17 anos, prestes a deixar a Unidade, conhece o Deputado Suplicy que detecta na jovem o potencial para ser resgatada. Numa tentativa de reintegração, solicita que Sandra deixe a FEBEM e assume a responsabilidade sobre ela, oferecendo-lhe trabalho em seu gabinete. Ela publica um livro de poesias junto com outros jovens. Mas também do lado de fora, as dificuldades continuam e quando ela não consegue ser aprovada num concurso para ser efetivada, fica ainda mais depressiva. Como no poema abaixo, que ela escreveu sobre a ausência de Suplicy e outros amigos no lançamento de seu primeiro livro.
Fiz de minha vida um enorme palco
Sem atores para a peça em cartaz
Sem ninguém para aplaudir este meu pranto
Que vai pingando e uma poça no palco se faz.
Palco triste é meu mundo desabitado
Solitário me apresenta como astro
Astro que chora, ri, e se curva à derrota
E derrotado muito mais astro me faço.
Todo mundo reparou meu olhar triste
Mas todo mundo estava cansado de ver isso
E todo mundo se esqueceu de minha estreia
Pois todo mundo tinha outro compromisso.
Mas um dia meu palco, escuro, continuou
E muita gente curiosa veio me ver
Viram num palco um corpo estendido
Eram meus fãs que vieram para me ver morrer.
Esta noite foi a noite em que virei astro
A multidão estava lá, atenta como eu queria
Suspirei eterna e vitoriosamente
Pois ali o personagem nascia
E eu, ator do mundo, com minha solidão...morria!
Em muitos momentos, madura. Em diversas situações, quase uma criança, as poesias que deixou mostram que se tivesse tido mais tempo, Sandra Mara Herzer (ou Anderson ou Bigode) talvez um dia tivesse se tornado um(a) escritor(a).
Na noite de 9 de agosto de 1982, Sandra bebeu com uma amiga no bar e parecia deprimida. A amiga avisou ao deputado Suplicy. Não houve tempo. Foi encontrada próxima a um viaduto de São Paulo, com diversas fraturas. Provavelmente se jogara. Em seu bolso o nome e telefonema do deputado. Faleceu na manhã do dia seguinte. E não chegou a ver o seu livro publicado.


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