terça-feira, 16 de abril de 2013
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Livro 106: Minhas Tudo (Mario Prata)
Há
autores que nos fazem pensar, questionar, debater. Há autores que nos fazem
sonhar, romancear. E há outros ainda que nos emocionam até as lágrimas. Seja
qual for o estilo, o que importa é o quilate da literatura. E Mario Prata é aquele autor que nos deixa de alma leve, com sua cronicas espirituosas e seu humor sagaz.
Ele não tem pudor de fazer os
comentários mais estapafúrdios, de cara lavada, não tem medo de se expor de
calças curtas nem de rir de si mesmo.
E
essa disponibilidade está presente em “Minhas Tudo”, publicado pela Objetiva em
2001.
Nesse divertido livro de crônicas, Prata faz um “inventário de si mesmo”,
enumerando seu cotidiano através de objetos pessoais, como um indiscreto criado mudo, um colchão usado ou um velho exemplar de Dostoiévski “nunca lido”.
São dezenas
de crônicas sobre os mais insólitos objetos e situações, o que permite que o livro
seja folheado ao acaso, sem ordem cronológica, assim como são as histórias. No desencadear das ideias, cada texto traz inserida em negrito, a palavra que
dará origem ao tema da crônica seguinte.
Mario Prata incorpora com exatidão o dom do cronista e falar do
cotidiano, com um olhar que todos temos mas que só ele traduz em palavras. O
que ele diz (escreve) certamente passou pela nossa cabeça, mas ninguém conta,
como ele, situações triviais com esse
charme despretensioso dos que não se levam a sério. Prata merece o título de representante
legitimo das pessoas comuns. O que o torna um autor incomum.
Em "Minhas Tudo", entre outras hilárias situações, Prata descreve a saga de um velho exemplar de
“Obras Completas de Dostoievski, Volume Quatro”. Um livro “viajadíssimo” que
ele carrega pra todo lado: Alemanha, 1978. Cuba, 1989. África, 90 e
91 - e outros destinos, sem jamais ter lido uma linha para saber “qual o bode dos
irmãos russos”. Com uma ressalva: as duas primeiras páginas, fabricadas
com folhas de seda fininha, serviram para atividades menos literárias: ele
revela, na cara dura, que nunca leu, mas fumou Dostoievski.
Com
a mesma presença de espírito lá vai o Mario registrar a conversa que teve certo
dia com um vírus, alojado em seu computador. E o que esse vírus tinha de
diferente dos demais, pasmem: ele não só tumultuava e ameaçava a integridade dos arquivos,
mas também do próprio autor.
“- Você
tem certeza que quer salvar este documento?”
“- Tenho”.
“- Absoluta?
Tá uma merda.”
E
a conversa se estende a ponto de o autor sonhar com a volta de sua velha
Lettera 22.
Mais
à frente, o cronista exaltará a importância de uma parte esquecida de nossa anatomia:
o joelho, “essa palavra feia, que proporciona rimas fáceis e deselegantes”. Num
quarto frio do Uruguai ele se dá conta da existência de seu joelho, que “sabe
que lá fora está zero grau. E sofre, coitado.”
Seguem-se as elucubrações pratianas
sobre a serventia do dito cujo – “Experimente fazer xixi com a perna um pouco
esticada.” “ Se o sabonete cai no chão na hora do banho, esqueça.”
“Mas a dificuldade maior é para se fazer amor, sem a colaboração total e
imprescindível do joelho. É
ele quem engata a primeira, e ele quem gira para uma marcha a ré
mais arriscada.”
Na
lista de assuntos do Prata não falta o constrangimento de presenciar, durante a
mudança para o apartamento novo, a gaveta de seu criado mudo se abrir, por
acidente, deixando cair no hall do prédio e à vista dos futuros vizinhos,
detalhes indiscretos de sua vida, como revistas Playboys,
camisinhas, um par de brincos dourados, duas pilhas Duracell e um tudo de
Redoxon, entre outros apetrechos. “ Fiquei olhando para o indecente móvel que
eu achava mudo.” E que entregava agora para estranhos cinco anos de sua vida.
E
quem melhor do que o Mario para analisar a utilidade de uma fila?
Contemporiza ele que “uma fila de banco é diferente de uma fila de padaria. Uma fila de
campo de futebol não tem nada a ver com a fila do supermercado”.
“A
pior fila, no consenso geral, e a fila do banco. Sim, você começa a sofrer com
ela no dia anterior. Amanhã eu vou ter que ir ao banco. E você já dorme com a
fila na cabeça(..). Ninguém esta feliz numa fila de banco ja notou? O sujeito
ja chega sofrendo”. (E nao é que o Prata tem razão?)“Mas o pior na fila
do banco é que a gente que está mais
atrás, olha a quantidade de papelzinho que o da frente tem na mão e logo pensa:
isso vai longe.”
Mineiro de Uberaba, Mario Prata escreve como quem divaga, de cerveja na
mão num sábado à tarde. Não é o que ele escreve, mas a forma como o faz que o torna cativante. Tem
se a impressão de que ele é o primeiro a
gargalhar de seus próprios escritos. Posso imaginá-lo fazendo pausas diante de um
texto inacabado explodindo num riso solto antes de retomar a seriedade do
oficio de escritor. Porque esse camarada definitivamente sabe rir de si mesmo
tanto quanto parece rir da vida.
Aconchegue-se
no sofá ou na sua poltrona favorita e prepare-se para boas risadas. Acompanhe Mario falando de corpo, de umbigo, de aeromoça,
de carteira e o que mais vier à cabeça. É muito provável que você feche o livro
com a sensação de ter tido uma conversa leve com o vizinho ali do lado. Antes
de ser um escritor ágil, certeiro e criativo, o Mario Prata é isso mesmo: o
vizinho ali do lado. Boa leitura.
Minhas Tudo
Autor: Mario Prata
Editora Objetiva
Ano: 2001
Número de páginas: 224
domingo, 14 de abril de 2013
Livro 105: Flores Raras e Banalíssimas (Carmen L. Oliveira)
Quem passa pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro de hoje, talvez não imagine que por trás desse "inusitado" parque à beira-mar, qie abrigam entre outras atrações, o Museu de Arte Moderna, existe o dinamismo e a obstinação de uma mulher: Carlota de Macedo Costalatt Soares, a Lota.
Uma figura que, contra todos os preconceitos machistas da época, conseguiu a proeza de comandar um grupo de renomados profissionais (incluindo o paisagista Burle Marx e os arquitetos Sergio Bernardes e Afonso Reidy), enfrentando obstáculos e derrubando “mesquinharias políticas” para realizar seu sonho de concreto.
Em Flores Raras e Banalíssimas, a escritora Carmen L. Oliveira desvenda o mundo de Lota nas décadas de 50 e 60, quando ela participa da construção do Parque do Flamengo, ao mesmo tempo em que vive uma história de amor com a premiada poetisa norte-americana Elizabeth Bishop.
Recorrendo a diários, ofícios e cartas de ambas, Carmen compõe um texto que mistura biografia com diálogos imaginários, recriando situações e dando voz não apenas a Lota e Bishop, mas também a personagens impagáveis como um grupo de espevitadas velhinhas amigas da brasileira, que já nos anos 90, com comentários à boca pequena, revelam detalhes da relação entre as duas, comparando a exuberância de Lota com “as esquisitices da gringa”.
Mas o livro não se resume a mexericos. Revela-se um registro valioso sobre como uma mulher, em plenos anos 60, e sem formação superior em arquitetura, esteve à frente da construção de um parque monumental, dedicando literalmente seus últimos anos de vida à realização desta obra.Uma figura ímpar, tenaz, inteligente, revolucionária que se valia de um gênio indomável e fama de mandona para conseguir (quase) tudo o que queria.
Amiga do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (que lhe dera carta branca na execução do projeto), não tinha pudor em interferir em suas decisões, nem de lhe fazer críticas em tom mal- humorado – Carlos, não seja idiota! – sempre que discordava de suas posições.
Elizabeth Bishop, ao contrário, é pintada por Carmem como uma mulher insegura, “sem graça” que volta e meia recaía no vício do alcoolismo tendo que ser monitorada e cuidada pela companheira. Não que ela fosse exatamente inexpressiva. Respeitada e laureada em sua pátria natal, recebeu o prêmio Pulitzer em 1956, pela obra “North & South”. Mas no Brasil era mais conhecida como a companheira de Lota.
O livro não segue uma ordem cronológica exata, intercalando as décadas de 50 e 60, tempo que durou o romance, com trechos de memórias de Bishop e passagens dos anos 90, com os irresistíveis testemunhos das amigas de Lota que recordam sua personalidade, sua relação com Bishop, e os motivos que a levaram a desistir da vida em 1967.
Entre 1951 e 1967, enquanto Lota Macedo se envolve com Elizabeth Bishop e abraça a causa da concepção e construção do parque do Flamengo, o Brasil vive a bossa-nova, a inflação, a queda de Getúlio, a ascensão e derrocada de Carlos Lacerda, e o advento do Golpe Militar. Turbulências no país e na relação entre as duas.
Mulher culta, refinada, frequentadora das altas rotas de artistas e intelectuais, e arquiteta autodidata, Lota também era considerada uma pessoa da pá virada, que vivia de acordo com suas ideias.
Foi em sua moderna casa, que construiu com o amigo Sergio Bernardes, encravada na mata de Samambaia, Petrópolis, que ela recebeu Elizabeth Bishop, que na época passava por um período de bloqueio criativo. Era o ano de 1951. Com uma personalidade complicada, cheia de traumas de infância, doenças e o vício do alcoolismo, Elizabeth encontra no Brasil e nos braços de Lota a paz para voltar a escrever. Naquele lugar que ela mesma considerou um paraíso, produziu alguns de seus melhores poemas, muitos com alusão a temas brasileiros. Mas nem tudo são flores (raras ou não). O relacionamento que começa feliz, aos poucos se torna um peso para ambas. Enquanto Lota é dinâmica, decidida e vivaz, Elizabeth é retraída e insegura. Os amigos de Lota não se entrosam com aquela americana achacadiça que, depois de cinco anos no Brasil, ainda não falava português. Enquanto Lota considerava Bishop um gênio, suas amigas a achavam “a imagem da semgracesa”. Até que a brasileira embarca no grande projeto de sua vida, a construção do Parque do Flamengo. Se dividindo entre Petrópolis e o Rio, Lota enfrenta os mais diversos embates, movendo mundos e fundos e se indispondo com poderosos para realizar o projeto. Entre outras desavenças, rompe publicamente com Burle Marx, ambos expondo suas divergências em notas nos jornais.
A obra que consome sua vida também a afasta de Elizabeth, que sentindo-se solitária e preterida, em vários momentos volta a afogar as mágoas na bebida.
Para superar o vazio, embarca para os EUA para dar aulas em uma universidade, no momento em que Lota vive os maiores impasses, alvo de críticas inclusive na imprensa. Na América, envolve-se com uma jovem aluna, que se dedica a ela de forma apaixonada.
Em 1967, com o parque já concluído, Lota é afastada da Fundação que iria administrá-la. Nada mais lhe resta senão seguir ao encontro de Elizabeth para tentar retomar a ligação. Está deprimida e com a saúde abalada.
Na mesma noite em que chega, após uma longa conversa, as duas vão dormir exaustas. Horas depois, Elizabeth acorda com um barulho na cozinha, chegando a tempo de amparar Lota que cai em seus braços com um vidro de Valium vazio. Ela entra em um coma do qual não mais desperta. Um telegrama para o Brasil traz a triste notícia para os amigos.
Elizabeth Bishop
No desamparo de uma e de outra, tanto Elizabeth quanto Lota tem razão em sua dor. Há quem diga que Bishop abandonou a companheira quando ela mais precisava de apoio.E há quem pense que Lota a deixara de lado para conduzir o projeto de sua vida. Nas páginas finais do livro, uma das amigas de Lota afirma que Bishop provocou sua morte. Outra assegura que quem matou Lota foi o Parque do Flamengo. Talvez ambas estejam certas.
Em sua delicadeza, Flores Raras e Banalíssimas não é um livro sobre homossexualismo, feminismo nem tem a pretensão de levantar qualquer bandeira.
É antes de tudo um livro sobre amor, entrega e obsessão. Sobre a força de um sonho ou sobre a fragilidade humana. Um livro sobre Lota e Elizabeth, cada qual com sua fraqueza, unidas pelo mesmo sentimento que mais tarde as separou.
FLORES RARAS E BANALÍSSIMAS
ED. ROCCO
CARMEN L. OLIVEIRA
1998
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde foi publicado pela Rutgers University Press, o livro de Carmem Oliveira foi muito bem recebido, tendo conquistado os prêmios Stonewall Book, da American Library Association, e Lambda Literary Award. Mas a sua maior contribuição foi resgatar a figura de Lota Macedo num momento ímpar da história do Rio de Janeiro.
sábado, 13 de abril de 2013
Livro 104: Iracema (José de Alencar)
"Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia
nas frondes da carnaúba [...]" Assim tem início o romance Iracema, a Lenda
do Ceará, de José de Alencar. Considerado “um poema em prosa”, a história
da "virgem dos lábios de mel", do "cabelo mais negro que a ave
da graúna" constitui uma das mais belas da nossa literatura romântica. Publicada
em 1865, e assinada por “um cearense ausente”, com esta obra em forma de lenda,
José de Alencar busca explicar poeticamente o surgimento de sua terra
natal. O romance faz parte da trilogia indianista do
autor (juntamente com O Guarani e Ubirajara), uma corrente que visava
valorizar e criar uma identidade para nossa nação, recém-libertada, mas ainda
sem raízes próprias.
Embora seja uma obra de ficção, inseridos na história estão dois
personagens reais da história do Brasil, o português Martim Soares
Moreno, expedicionário em missão no Brasil, que se ligou à
tribo tabajara e o índio Poti, que depois de converter-se ao cristianismo,
batizou-se com o nome de Antônio Felipe Camarão. Ambos se
tornaram heróis na luta contra a invasão holandesa na região.
O enredo se passa nos primeiros anos do século XVII e tem como cenário
as terras de um Brasil não desbravado. Com linguagem lírica, repleto de termos
indígenas e paisagens idílicas marra o encontro da bela índia Iracema com o
guerreiro branco Martim. Mas a mensagem metafórica do romance é a conquista da
América pelo europeu. Da união entre o índio e o branco, ocorre a fusão de
raças e culturas, dando origem ao miscigenado povo brasileiro.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu
Iracema.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara.
Iracema, a virgem dos lábios de mel,
é índia da tribo dos tabajaras e filha do pajé Arakem.
Detentora dos segredos da Jurema (bebida mágica utilizada em rituais
religiosos), é considerada uma espécie de vestal e tem sua virgindade
consagrada aos deuses.Formado a partir das palavras indígenas Ira- mel e tembe
– lábios, o nome Iracema é também um anagrama de América. Martim, por outro
lado, remete a Marte, deus greco-romano da guerra e da destruição, o que nos
lembra que de alguma forma o ato de conquistar também pode ser interpretado
como “destruir”.
Quando Martim, guerreiro português,
ligado à tribo dos pitiguaras, durante uma caçada, se perde dos companheiros, se embrenha na mata da tribo de Iracema. Ao se deparar com o guerreiro
branco, a índia, surpresa e assustada lhe desfere uma flechada na
face.
Foi rápido como o olhar, o gesto de Iracema. Gotas de sangue borbulham
na face do desconhecido.
Com a reação pacífica de Martim, a índia se arrepende e a “a mão
que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava”.
Em seguida, ela quebra a flecha e entrega a haste ao
desconhecido, que pergunta:
— Quebras comigo a flecha da paz?
Conduzido por Iracema para sua tribo,
o guerreiro é recebido como hóspede e amigo pelo pai da índia, o pajé “o estrangeiro
é senhor na cabana de Araquém”.
A simpatia nascida entre Martim e Iracema logo se transforma em amor, embora a virgem o alerte de
que se ligar a ela poderia ser sua perdição:
— O mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no
tronco da guabiroba: tem na doçura o veneno.
Era tarde. O guerreiro já havia sido
flechado pelo amor.
Uma noite, na cabana, após beber o vinho trazido por Iracema, Martim adormece. Ao sonhar com a amada, chama por ela. “O lábio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome,
e soluçou, como se chamara outro lábio amante. Iracema sentiu que sua alma se
escapava para embeber-se no ósculo ardente”. Enquanto ele sonha que a
abraça, ela, acordada, o abraça de verdade. Enquanto ele julga estar sonhando,
a união entre os dois se consuma.
Na manhã seguinte, quando Martim anuncia sua partida, Iracema revela
que seguirá com ele pois se tornara sua esposa:
- Tua escrava te acompanhará, guerreiro branco; porque teu sangue
dorme em seu seio.
Entre Iracema e Martim não havia apenas
um oceano de histórias, havia um guerreiro tabajara que também cobiçava a
índia: Irapuã, cujo nome significa abelha feroz. Desafiado por Irapuã, o branco
é obrigado a lutar com os pitiguaras, contra a tribo da amada, façanha na qual
sai vitorioso.
Os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de
cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em
nuvem negra de pó. O pranto orvalhou seu lindo semblante.
Mesmo sofrendo pela derrota de seu povo, a índia acompanha Martim e
o guerreiro amigo Poti. Por um tempo, “a filha dos sertões” consegue ser feliz “como a andorinha que
abandona o ninho de seus pais e emigra para fabricar novo ninho no país
onde começa a estação das flores." A índia encontrara "uma nova pátria para o coração”.
Certa feita em que Martim retorna da caçada, Iracema anuncia que espera um filho do guerreiro branco:
— Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho!
Martim, que adotara o nome indígena de Coatiabo, beija o ventre fecundo da
esposa.
No entanto, nem mesmo o sentimento pela virgem dos lábios de mel consegue
aplacar a dor de “um coração exilado da pátria.” Assim
como a América, que fascinava e amedrontava os guerreiros brancos, o amor de
Iracema não bastava para Martim, que vivia tomado por lembranças do passado, a
contemplar as embarcações passando a longe no mar.
Encontra-se num impasse: ficar
com Iracema longe de sua terra ou arrancar a índia de suas raízes. O amor se
revela impossível. Quando Poti é convocado para lutar contra os tupinambás
e defender seu povo, o fiel amigo Martim segue com ele. Iracema
dá à luz sozinha, o fruto de sua união com o homem branco (a fusão de dois
mundos). Nascia assim, o primeiro brasileiro miscigenado.
Banhando o menino nas águas límpidas do rio, ela proclama, com tristeza e amor:
- Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.
Segundo José de Alencar, essa imagem personifica o brasileiro, miscigenado, fruto do amor,
mas com resquícios de dor. Afinal a conquista do Brasil pelo europeu não foi
feita sem sofrimento.
Quando Martim retorna, Iracema só tem forças para erguer o filho nos
braços e apresenta-lo ao pai.
- Recebe o filho de teu sangue. Chegastes a tempo; meus seios
ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!
Enfraquecida, Iracema não mais se levanta da rede, e pede que o amado enterre seu corpo
ao pé do coqueiro, pois "quando o vento do mar soprar nas folhas,
Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos".
No local, Martim quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e
deitou-o no jazigo de sua esposa.
- Iracema!
O lugar onde Martim enterrou a amada
veio a se chamar Ceará, que significa canto da jandaia, a ave de estimação de
Iracema.
No romance é possível perceber o
esmero do autor na construção dos dois personagens principais,
fazendo sobressair a coragem e sabedoria da filha de nossa
terra. Martim, o português, de conquistador torna-se cativo do amor.
De bravo guerreiro, assume em vários momentos a posição de protegido pela bela
índia, corajosa e doce, com sua sabedoria extraída da vida na
floresta. Assim como o Brasil, cuja beleza seduz e acolhe o
estrangeiro.
Quatro anos depois, Martim retorna com seu filho ao Ceará, com a missão
de implantar a fé cristã.
As terras, que foram de sua felicidade, são agora de amarga saudade.
Revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a
formosa tabajara.
As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o
mavioso nome de Iracema.
Tudo passa sobre a terra.
sexta-feira, 12 de abril de 2013
Livro 103: A Hora da Estrela (Clarice Lispector)
Publicado em 1977, pouco antes da morte da autora,
A Hora da Estrela de Clarice Lispector tornou-se um clássico da literatura
brasileira. Oculta sob a figura de um narrador, identificado como Rodrigo S.
M., Clarice divaga sobre o fazer literário, enquanto fala das aventuras de uma
jovem nordestina tentando sobreviver na cidade grande. Compõe, assim, uma das
personagens mais ricas e complexas de sua carreira.
Logo de início antes mesmo das palavras, o narrador confessa: quer escrever
uma história “com começo, meio e gran finale, seguido de silêncio e de chuva
caindo.” Quer contar a história “verdadeira, porém inventada de uma moça numa
cidade toda feita contra ela.”
Denota-se em suas palavras a onipotência de um deus. É ele, o autor,
quem dá ou tira a vida. A história, o personagem, a ação só existem a partir
dele e com ele: “Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido”.
Rodrigo S. M. (ou Clarice) não escreve apenas para contar uma história.
Escreve para se livrar da angústia que a personagem exerce sobre ele. Escreve
para se libertar – ou antes, para se redimir. “Enquanto eu tiver perguntas e
não houver respostas continuarei a escrever.”
Ele precisa contar a história dessa moça nordestina. Ele precisa contar
a história dessa moça que não tinha história. “Preciso falar desta nordestina
senão sufoco. Ela me acusa e meio de me defender é escrever sobre ela.”
Como um desejo urgente, ele quer escrever sobre essa moça porque acha
que é sua “obrigação” revelar-lhe a vida. “Eu não inventei
essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.”
Escrever é sua maneira de se redimir. Mas que culpa tem o autor por essa
moça existir?
Num exercício de metalinguagem Clarice/Rodrigo
reflete sobre a produção da obra. Cada aspecto da narrativa é discutido com o
leitor.
Como escrever uma história que ainda não existe? “Ah que medo de começar
e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera
por ser simples demais.” ‘Ainda bem que o que eu vou escrever já
deve estar escrito em mim.’
Com amor ou com desprezo, ele fala da moça, que vira de relance numa rua do Rio de Janeiro e cuja história ele descobre
ao mesmo tempo em que a escreve. Eis a mensagem: ele também se lê. “Se a história
não existe passará a existir.”
No início do relato, a moça, que nascera “lá no sertão de Alagoas,
onde o diabo perdeu as botas”, nem nome tem. Levará algumas páginas para que ela mesma o revele a um possível namorado.
A história brota em imagens mais do que palavras, na mente do escritor.
É Clarice em sua forma mais bruta, debruçada sobre um tema
inexplorado, a amargura do sertanejo em busca de vida.
Vamos a ela, a moça, nas palavras do narrador: “A pessoa de quem vou falar
é tão tola que às vezes sorri para as pessoas na rua.”
A moça é nordestina. Mais do que nordestina, alagoana. Raquítica,
herança do sertão, órfã desde os dois anos de idade, “não
sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor.”
“Ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás, eu descubro
agora também eu não faço a menor falta.” (Momento em que narrador e personagem se
unificam)
Então algo mais se revela, ao autor, que nada sabe: a moça é datilógrafa
– ou ao menos fez um curso, com a ajuda da tia que a criara após a morte dos
pais. A tia cuja noção de educar era lhe dar cascudos fortes na cabeça. E ser
datilógrafa concedera um status paraela, que nada tinha. Como frisa o autor:
“ela não tinha”.
Tomado de sentimentos pela jovem, ele quer cuidar dela, lhe dar
carinho. Quer compreendê-la. Mas no fundo, quer ser, ele mesmo compreendido.
Já no Rio de Janeiro, quando a morte lhe rouba a tia, a moça se vê às
voltas com a obrigação de (sobre)viver. Consegue emprego numa firma
representante de roldanas. Incompetente que era, quando seu chefe
ameaça demiti-la, sem ter o que dizer, pede desculpas. Essa moça, diz o autor,
pede desculpas por existir.
Morando numa pensão com mais quatro Marias, seu único lazer é ouvir
todas as noites a Rádio Relógio, que dá hora certa, cultura e nenhuma música. Solidão extrema.
Todos os dias iguais, ela acordava sem existir. “só então vestia-se de
si mesma e passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.” “Vagamente
pensava de muito longe e sem palavras o seguinte – já que sou o jeito é ser.”
Num dia em que falta ao trabalho para passear (primeiro ato de rebeldia)
a moça nordestina encontra Olímpico de Jesus. Chovia muito quando ele se
apresentou como “metalúrgico” e a chamou de “senhorinha".
- Qual a sua graça? – ele pergunta. Ao que ela responde: - Macabéa.
Ele se espanta: - Me desculpe, mas parece nome de doença. Doença de
pele.
Agora autor e leitores já sabem quem é a moça que veio de Alagoas tentar
a sorte no Rio de Janeiro. Ela se chama Macabéa e tem um namorado.Um namorado que nem sempre aparece no ponto de ônibus, que a chama de
magricela esquisita, mas mesmo assim, um namorado. Olímpico, “que besuntava o cabelo preto até encharcá-lo (de vaselina)”.
Que matara um homem, nos cafundós do sertão. E tinha uma mania
estranha de frequentar enterros de desconhecidos (e chorar copiosamente).
Olímpico, o metalúrgico, fala palavras bonitas e tem a ambição de um dia
ser “rico e deputado”. “Ele falava coisas grandes, mas ela prestava atenção nas coisas
insignificantes como ela própria.”
“Ela disse:
- Eu vou ter tanta saudade de mim
quando eu morrer.”
A Macabéa de Clarice é uma metáfora sobre a
simplicidade dos que nada sabem.
No segundo dia em que Olímpico encontra Macabéa, está chovendo.
- Você só sabe mesmo é chover.
O jeito de Macabéa impressionar o
pretendente era exibir seus conhecimentos adquiridos na Rádio Relógio:
- Na Rádio Relógio disseram uma
palavra que achei meio esquisita: mimetismo.
Olímpico a olha desconfiado.
- Isso é lá coisa para moça virgem falar? E para que serve saber demais?”
- Olhe, eu vou embora porque você é impossível.
- É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para
conseguir ser possível?
E eis que numa visita a Macabéa no escritório, Olímpico conhece sua colega Glória, sensual e cheia de carnes. O namoro com
Macabéa “entrara em rotina morna, se é que alguma vez haviam experimentado o
quente”. Olímpico percebe que Glória sendo loura (oxigenada, mas loura) e filha
de açougueiro, combinava mais com ele. “Gloria possuía no sangue um bom vinho português
e também era maneirada no bamboleio do caminha por causa do sangue africano
escondido. Apesar de branca tinha em si a força da mulatice. E tinha uma
vantagem que nordestino não pode desprezar: era carioca”.
Assim termina, segundo o autor, o namoro entre Olimpico e
Macabéa. “Namoro talvez esquisito, mas pelo menos parente de algum amor
pálido.” Macabéa já havia percebido o que houve com Olímpico e Gloria: “ os
olhos de ambos se haviam se beijado.” No dia seguinte, a moça decidiu dar uma
festa para si mesma. Comprou um batom vermelho “vivante”.
No banheiro do escritório, ela pintou a boca toda, até fora dos
contornos para que os seus lábios finos parecessem os de Marylin Monroe. Glória
riu.
Nas palavras do autor, Macabéa inexiste, sendo enxergada por poucos,
como seu patrão, que não a demite por pena. Como Glória, que lhe pergunta se
“ser feia dói” ou Olímpico, que a define como “um cabelo na sopa.”
Com remorso por roubar seu namorado, Glória lhe indica uma cartomante sua
conhecida. Quem sabe ela resolveria sua vida?
Madama Carlota, que revela ter sido mulher da vida, conversa com Macabéa
no diminutivo:
- Vocezinha tem medo das palavras, benzinho?
- Corte as cartas minha adoradinha.
“Macabéa separou um monte com a mão esquerda: pela primeira vez ia ter
um destino. Madame Carlota (explosão) era um ponto alto em sua existência”.
É quando a cartomante anuncia em seu futuro o encontro com um homem
“estrangeiro de olho verde ou azul ou castanho ou preto”, que lhe daria uma
vida de luxo e amor. Um louro de nome Hans, muito rico, pois “todos os gringos
são ricos.”
“A cartomante lhe decretara uma sentença de vida”.
Como num conto de Machado de Assis, a moça sai da cartomante, “grávida
de futuro”. Enorme como um transatlântico, vem o Mercedes Benz amarelo que a
atinge. Ela bem que nota: é um carro de luxo. E o sangue que brota em sua
cabeça também é vermelho rico.
O narrador avisa: “Não falei nem falarei em morte, mas atropelamento”.
E se debate quanto ao destino da moça. “Não sei se ela vai morrer.”
Os transeuntes se reúnem em torno de Macabéa, que se torna, pela
primeira e última vez na vida, o centro das atenções. “As pessoas a espiavam, o
que lhe dava uma existência”.
É sua hora de estrela, em que ela vai ser "tão grande como um
cavalo morto". “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de
minha vida: nasci”.
“Então começou levemente a
garoar. Olímpico tinha razão, ela só sabia era chover”.
Percebe-se a dificuldade do autor (Rodrigo? Clarice?) de se despedir de
Macabéa. É dele o poder de lhe dar vida ou morte.
“Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina infante,
mas quero o pior: a vida”.
O autor divaga sobre o destino da menina, mas este já estava escrito desde
que ela nascera. Faltava pouco para se cumprir e cumpre-se em palavras:
“Morrendo ela virou ar”.
Em
A Hora da Estrela, como em todo romance de Clarice o que sobressai é a
narrativa, é o encadeamento das palavras, a crueza da escrita, visceral,
pungente, mais do que a história em si. Metáfora da simplicidade dos que nada sabem, o que Macabéa tem de mais precioso não é sua curta vida, mas a marca que ela carrega, as histórias que não teve tempo de contar. Porque nem chegou a ter tempo de ser.
Finalizando a história/vida de Macabéa, só resta ao autor “acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora lembrei que a gente morre.”
É Clarice encerrando, magistralmente, o último livro de sua vida.
Finalizando a história/vida de Macabéa, só resta ao autor “acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora lembrei que a gente morre.”
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