domingo, 17 de fevereiro de 2013

Livro 48: A Confissão (Reinaldo Santos Neves)

Um pequeno livro com uma bela história. Com apenas 68 páginas, “Confissão”, do escritor capixaba Reinaldo Santos Neves, parece ter sido escrito sob uma névoa de recordações guardadas com carinho na memória do autor e que ele despeja em forma de um texto bordado com a ternura da infância, da inocência e do sonho. Ao narrar um curto espaço de vida de Dimas, menino de oito para nove anos, sua voz se confunde, ora com a de um adulto, ora a do próprio menino, de calças curtas, tentando revisitar a casa de sua infância, as imagens ternas dos pais – ele, professor do colégio do Carmo e ela, dona de casa – a professora de francês, os colegas de escola.
“Vitória era uma ilhota naquele tempo: dali do pátio, apoiado à muret , dava pra ver os altos e baixos do casario, as mangueiras, nos quintais, o vulto abespinhado da catedral a Cidade Alta; o busto pétreo do Penedo ao fundo, tostando ao sol de 58”.
Como o próprio nome do livro sugere, a religiosidade está presente na infância do menino, que no entanto a encara com leveza, de forma quase lúdica. "Dever da escola era decorar as orações da Igreja." Diga-se, de passagem, que Vitória, no Espírito Santo, onde se passa a história,  é chamada ainda hoje de Cidade Presépio. E nos idos dos anos 50, tudo nela remetia a um badalar de sinos: o tamanho, a arquitetura, a singeleza.
Começa o livro com a família se preparando para a missa, que os pais preferiam assistir às oito, na Capela do Carmo, quando toda a vizinhança ia às sete, na Catedral. O menino Dimas se incomoda de ser diferente e olhado pelos amigos “como um judeu – ou pagão”.  E não adianta a mãe explicar que eles iam à missa no Carmo por que o pai era professor do colégio.
Lembra que seu pai costuma assistir a missa de pé, talvez para evitar o senta e levanta comandado pelo padre. Durante a missa, seu pensamento voa, lembrando de Cecília Marmorosa, a professora que deixava os alunos em polvorosa.  Pensa no pai, que é religioso ao seu modo, misturando fé com crença popular: Santa Luzia, para tirar cisco do olho; São Braz para ajudar no acesso de tosse:
“Sombrás, Sombrás!” E para os dias de chuva," Santa Clara, clareai!"

Enquanto se distrai com a professora voltando para seu lugar após receber a hóstia, Dimas abre o missal da mãe onde encontra um número de telefone anotado num papel, e uma receita de doce de goiaba para F. “Quem seria F.?”
Logo se seguem outras lembranças conduzidas pelo tédio da missa: a professora Cecília, que era “das que permanecem casadouras sem casar.” Tadeu, filho de refugiados poloneses. E André Christicci, que era rico e usava óculos. “Estranho como um noviço”.
Lembra as meninas da escola, “havia uma dúzia delas”. Claudete, “que parecia freira”. Irali, “uma índia” e Branca, “que era branca mesmo”. E Nazle – que fim levou Nazle? “Certamente casou e mudou, e levou o cobertor”.
A doçura percorre as páginas na lembrança do menino:a merenda da escola, que era sempre pão com goiabada; a mãe, com seus cabelos lisos e negros e ralos. Os soldadinhos de plástico verde militar, que ele espetava com agulha de toca-discos e pintava com esmalte vermelho Coty de sua mãe para indicar os feridos. As estampas do sabonete Eucalol. A espiral Ipril, pra espantar mosquitos. Ate os suplícios da infância, quando a dor de garganta demandava uma boa embrocação. “Minha mãe pegava uma vareta , do meu jogo de varetas e cobria a ponta com algodão, mergulhava no frasco de Colubiazol. Abre a boca – Aaah!” E para arrematar, Vick Vaporub. Sem esquecer o lado bom da gripe:  " três dias debaixo das cobertas, na vasta cama dos pais tomando limonada e lendo a Chave do Tamanho, enquanto Vento Sul regava a cidade lá fora com chuva grossa e fria – grossa e fria.”
Mas a maior parte das lembranças vem das obrigações religiosas, a primeira comunhão, os pecados anotados em uma folha de papel, para não esquecer, na hora da confissão. “Quem nos catequizou  não foi nenhuma das freiras, que víamos caladas em si mesmas,  passeando no jardim, mas uma beata de família libanesa que tinha buço e não tinha marido”.
E o momento mais importante da missa, a hora de doar dinheiro.“ Eu tinha um grande respeito por aquela sacola roxa e uma relação, quem diria, profissional com ela: era eu o encarregado de dar a contribuição da família. A moça chegou até nossa fila, enfiei a mão lá dentro da sacola e deixei a nota que meu pai sempre me dava para isso.”
Com um texto respeitoso, como que sussurrado pelo menino na hora da missa, ao contrário da maioria das recordações de meninos criados dentro de maior rigidez cristã, não há, no relato de Reinaldo/ Dimas, qualquer traço de contrariedade, terror ou mágoa, mas simplesmente saudade. Na Vitória daquele tempo, era permitido sonhar.

Confissão

Reinaldo Santos Neves
Coleção Almeida Cousin
Editora Instituto Histórico

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