
Ambos faziam parte do seleto Grupo Bloomsbury, formado por intelectuais sofisticados, que introduziu um novo pensamento literário na Inglaterra, em oposição à tradição vitoriana. Com um casamento atípico e feliz, marcado por cumplicidade, respeito e
liberdade, Virginia viveu várias e intensas paixões por
mulheres. Mais do que amá-las, aparentemente o que mais gostava era
o fato de ser amada por elas.
Mas a parte mais marcante de sua personalidade era menos feita de sonhos que de pesadelos. Com episódios frequentes de alucinações e crises depressivas, vivia entre a loucura e a genialidade, entre a apatia e a
produção, entre a paixão e a melancolia. Pouco à vontade no mundo, buscava nos livros um refúgio e na literatura uma salvação. E tinha tanto medo de enlouquecer que
acabou pondo fim à vida em 28 de março de 1941, aos 59 anos, jogando-se no Rio
Ouse. Sua carta despedida sugere que estava assim libertando
o marido de um futuro sombrio ao seu lado.
Contudo, havia uma Virginia, mais
precisamente a do lado de dentro de casa, que entre trechos de romance e
visitas de amigos/as ou períodos de depressão, se dedicava à prosaica tarefa de dar ordens às empregadas que a serviram
por anos, Nelly Broxall e Lottie Hope.

A ideia do livro surgiu quando Giménez,
estudiosa do grupo Bloomsbury e seus protagonistas, debruçada num dos diários
de Virginia, se deparou com o seguinte trecho: “Se este diário tivesse sido
escrito por mim e um belo dia caísse em minhas mãos, eu tentaria escrever um
romance sobre Nelly, a personagem. Toda a história entre nós duas, os esforços
de Leonard e meus por nos livrarmos dela, nossas reconciliações.”
Resolveu então atender a esse “chamado”.

Alternando
imagens reconstruídas de episódios registrados em biografias sobre a
escritora, com trechos extraídos dos diários, Bartlett nos revela o mundo doméstico de
Virginia Woolf. As conversas triviais com as criadas, a escolha do cardápio do
dia, jantares com amigos e suas constantes crises
depressivas. Durante todo o livro, as vozes se alternam. Ora é um diálogo recriado entre Virginia e a criada sobre o significado do voto feminino (na
época aprovado com inúmeras restrições); ora um trecho do diário de Nelly com
reflexões sobre o estado de espírito de Virginia ou a falta de
perspectiva de sua vida; num momento, um panorama das dificuldades pelas
quais passava a Inglaterra em tempos de guerra; em outro, a voz da própria
Alicia que se faz ouvir, com colocações sobre Virginia, sobre Nelly – e o tempo chuvoso de
Londres!
“Eu gosto quando a patroa está contente e não aguento quando a vejo com aquele olhar tão triste que se perde no ar. A patroa está completando 36 anos.”
“A patroa está de cama há quatro dias. Quando tem gripe ela nunca se levanta antes de uma semana. Isso também me entristece.”
Na
recriação de autora, visualizamos uma atarantada serviçal, não muito
inteligente, mas não de todo ignóbil, que soube tirar proveito do contato com
os patrões intelectuais e seus amigos para ampliar seus pensamentos e seu
universo. Nos jantares na casa de Virginia e
Leonard era comum se encontrar artistas e intelectuais como Roger Fry, Katherine
Mansfield, Vanessa Bell (irmã de Virginia) e a poetisa Vitta Sackville-West,
com quem ela teve um forte affair que inspirou a obra Orlando, descrita por Nigel Nicholson como "a mais longa e mais
encantadora carta de amor de toda a literatura".
“Ontem chegou a honorável Sra Vitta Sackville-West também chamada Sra Nicholson que passará toda a semana conosco em Monk´s House. É a primeira vez que eu vejo uma honorável. Não saberia dizer se ela é bonita ou não.”
Os hábitos inusitados do casal e as ideias avançadas do grupo
não escapam ao olhar atento e espantado das criadas:
“Meu Pai eterno, ri tanto que achei que
muitas costelas iriam se partir! Imaginei tudo desde o princípio, desde que
Lottie veio porta adentro com os olhos arregalados e me disse que eles tinham começado a falar da Sociedade Britânica do Sexo. Estava escandalizada,
sobretudo, porque haviam falado na sua frente, quando ela preparou a mesa para
servir o chá.”
Embora aprendesse muito com o convívio com os
patrões, Nelly delimitava uma linha imaginária que a separava do
mundo deles. Jamais teria uma casa, dificilmente teria um casamento e ainda que
o tivesse (como a própria patroa dizia), provavelmente seria mais uma escrava
do marido, trabalhando sem receber.
“Então uma mulher não deve se
casar nunca?”
“Não sei, Nelly, não sei, talvez em
tempos menos complicados, ou com um homem que ele possa oferecer algo melhor.”
O fato é que Nelly rompeu um noivado com
um homem bastante simples e nunca se casou.
Com o tempo, nos diários de Nelly e de
Virginia, Alicia descobre menções a respeito de incidentes domésticos,
percebendo as transformações pelas quais passa o relacionamento. Nelly
torna-se mais questionadora, Virginia mais impaciente. Nelly se comporta de
forma crítica e irônica. Virginia mantém-se distante, quase indiferente. Muito
embora a animosidade se alternasse com fases de tranquilidade, o fato é que a
relação entre as duas parecia prestes a explodir.
Entre diversas reflexões, Bartlett busca analisar, aos olhos de Nelly, o envolvimento de Virginia Woolf com suas
amigas. “É inútil tentar saber se entre Virginia Woolf e Vitta
Sackville-West houve algo maior que um amor espiritual baseado na fascinação
mútua. Há biógrafos que se inclinam por essa opção e outros que sustentam que
entre ambas houve contato sexual. (...) Lendo o diário de Nelly, também não
podemos encontrar alguma luz sobre a índole desse amor. Mas isso pouco importa
para minha reconstrução da vida de Nelly. O fato evidente é que aquela relação
escandalizava a cozinheira , e não porque fosse algo diferente daquilo a que os
membros do grupo a tinham acostumado, mas pela vergonha pública que
representava para Leonard Woolf. Curioso.”
Baseado nos relatos do livro, não causa estranheza o comportamento da criada. Para alguém como ela, que nada possuía de seu no mundo (nem mesmo o quarto em que dormia), sem perspectiva de ascensão, seria quase impossível não acalentar
ressentimento pela patroa, bem nascida, intelectual e que tendo a sorte de um
bom casamento, não valorizava tal destino.
Aos olhos de Nelly, limitada em seu mundo de poucos sonhos, esta era
possivelmente a maior afronta de Virginia:
Ter a coragem de viver como queria e
da forma com a qual acreditava.
Quanto a Virginia Woolf,
sempre imersa em seus trabalhos e reflexões, era provável que o
temperamento agitado e atrevido da criada lhe provocasse mais cansaço do que
repulsa. A própria Nelly se queixa à Lottie: “Preferia que ela brigasse, não que ficasse com
essa expressão de vítima no olhar”.
Para a circunspecta
Virginia, devia ser mesmo complicado conviver com os rompantes de urgência de Nelly, que a
retirava de seu processo de sonho (a criação, a intelectualidade) para lembrar
que faltavam legumes na despensa e que o preço do peixe estava caro.
Duas
mulheres tão diferentes, tão perigosamente opostas, que é de se admirar que tenham convivido durante tanto tempo.
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