Recebido a princípio com desconforto, pouco a pouco o médico venceu a resistência, conquistando a admiração e a confiança dos internos. Convivendo com detentos de todos os tipos, orientando, educando e atendendo doentes, Dr. Dráuzio acabou, segundo ele, ouvindo muitas histórias, fazendo amizades verdadeiras e aprendendo muito sobre medicina e sobre a vida, além de penetrar em "mistérios da vida no cárcere", inacessíveis, não fosse ele médico.
Segundo o autor, o objetivo do livro não é "denunciar um sistema penal antiquado, apontar soluções para a criminalidade brasileira ou defender direitos humanos de quem quer que seja."
Ele busca, antes,"abrir uma trilha entre os personagens da cadeia: ladroes, estelionatarios, traficantes,estupradores, assassinos e o pequeno gupo de funcionários desarmados que toma conta deles."
Ao abrir as portas do Carandiru, nos convida a entrar e enxergar, pelos olhos dele, o dia a dia e a luta pela sobrevivência física e psicológica nas galerias repletas de presos, num reconhecimento perturbador da alma humana.
Pouco a pouco, somos apresentados a personagens quase folclóricos, como o mulato franzino Sem-Chance, abandonado pela família após a morte da mãe, que ganhou esse apelido por terminar todas as frases com essa expressão. "Sou um zero no mundo. Estou perdendo a identidade própria do ser humano. Sou um "Sem-Chance".
O velho Jeremias, "de carapinha branca, sobrevivente de quinze rebelioes e pai de 18 filhos com a mesma mulher", que conseguira criar a vasta prole com dignidade - vendendo maconha.
Ezequiel, um bigorneiro do Pavilhão Oito, que orgulhava-se de fazer a mais pura das pingas (a maria-louca), a partir da destilação de milho de pipoca trazido pela família.
E Edelso, um ex-receptor de carros roubados, que antes da prisão também se passava por médico, dando consultas (gratuitas) à vizinhança, com nome e CRM de um médico falecido. Segundo o doutor, Edelso era, entre todo os detentos, o que mais tinha jeito para a medicina, sendo um grande auxiliar no atendimento aos companheiros, aplicando injeções e fazendo curativos.
Enquanto nos apresenta a esses "heróis", Dr. Dráuzio esclarece que, embora privados da liberdade, existe no Carandiru um código de conduta não escrito, seguido à risca pelos presos. Como ele ouviu de um detento: "Aqui na cadeia um crime nunca prescreve".
"No mundo do crime a palavra empenhada tem mais força do que um exército."
Relatando sua experiência junto a pessoas que foram privadas até mesmo de esperança, o autor deixa transparecer, nele mesmo, uma transformação como médico e como pessoa.
"Com mais de 20 anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão".
O livro não poderia deixar de culminar com o relato do trágico massacre do Carandiru, que começou com um desentendimento entre dois rivais no pavilhão nove. Eram 14h30 do dia 1º de outubro de 1992, uma sexta-feira. Em poucos segundos eclodiu a rebelião. Trinta minutos depois, policiais entraram na Detenção com metralhadoras, cães e escopetas, sob ordem do Governador Fleury Filho. No final da operação, 111 detentos estavam mortos.
"Para ! Já chega! Acabou!" Uma, depois da outra, as metralhadoras silenciaram. Após os tiros caiu um silencio de morte na galeria. Os carros da polícia e do IML transportaram os mortos, até tarde da noite. Nas celas o ambiente era trágico. Dadá, um preso evangélico sobrevivente abriu a Bíblia e leu o salmo 91, chorando como criança com o trecho: "Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido, nada chegará à tua tenda".
DRAUZIO VARELLA
1999
Companhia das Letras
O autor:
Além de médico cancerologista formado em 1967, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, escreve sobre ciência na Gazeta Mercantil e é articulista da Folha de São Paulo. Publicou Macacos (Publifolha 2000), Rua do Brás (2000). Lançada em 1999, a obra Estação Carandiru recebeu o prêmio Jabuti do livro do ano e não ficção.
Quando li: 1999
Como adquiri: comprado na livraria Siciliano.
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