sábado, 26 de janeiro de 2013

Livro 26: Estação Carandiru (Dráuzio Varella)

Um médico realizando serviço voluntário no maior presídio do país. Mais de 7.000 detentos de graus diversos de periculosidade. Vidas entrelaçadas de pessoas sofridas espalhadas por sete pavilhões de cinco andares. Essa é a tônica de 'Estação Carandiru', escrito pelo cancerologista Dráuzio Varella. Um relato romanceado da vida dentro do Complexo do Carandiru, onde o médico atuou por 10 anos, realizando atendimento e ações de prevenção às drogas e  à AIDS. O mesmo presídio que foi palco, em 1992, daquele que ficou conhecido como o massacre do Carandiru, quando, durante uma revolta de presos, a ação desproporcional da polícia resultou no assassinato de 111 detentos encurralados. Pubilicado pela Companhia das Letras em 1999, "Estação Carandiru" divide-se em 58 episódios que narram, desde o espaço físico do presídio e sua rotina diária, até histórias de pessoas que ali vivem (os detentos) ou convivem (funcionários do presídio, prestadores de serviços e a família dos presos).
Recebido a princípio com desconforto, pouco a pouco o médico venceu a resistência, conquistando a admiração e a confiança dos internos. Convivendo com detentos de todos os tipos, orientando, educando e atendendo doentes, Dr. Dráuzio acabou, segundo ele, ouvindo muitas histórias, fazendo amizades verdadeiras e aprendendo muito sobre medicina e sobre a vida, além de penetrar em "mistérios da vida no cárcere", inacessíveis, não fosse ele médico.
Segundo o autor, o objetivo do livro não é "denunciar um sistema penal antiquado, apontar soluções para a criminalidade brasileira ou defender direitos humanos de quem quer que seja."
Ele busca, antes,"abrir uma trilha entre os personagens da cadeia: ladroes, estelionatarios, traficantes,estupradores, assassinos e o pequeno gupo de funcionários desarmados que toma conta deles."
Ao abrir as portas do Carandiru, nos convida a entrar e enxergar, pelos olhos dele, o dia a dia e a luta pela sobrevivência física e psicológica nas galerias repletas de presos, num reconhecimento perturbador da alma humana.
Pouco a pouco, somos apresentados a personagens quase folclóricos, como o mulato franzino Sem-Chance, abandonado pela família após a morte da mãe, que ganhou esse apelido por terminar todas as frases com essa expressão. "Sou um zero no mundo. Estou perdendo a identidade própria do ser humano. Sou um "Sem-Chance".
O velho Jeremias, "de carapinha branca, sobrevivente de quinze rebelioes e pai de 18 filhos com a mesma mulher", que conseguira criar a vasta prole com dignidade - vendendo maconha.
Ezequiel, um bigorneiro do Pavilhão Oito, que orgulhava-se de fazer a mais pura das pingas (a maria-louca), a partir da destilação de milho de pipoca trazido pela família.
E Edelso, um ex-receptor de carros roubados, que antes da prisão também se passava por médico, dando consultas (gratuitas) à vizinhança, com nome e CRM de um médico falecido. Segundo o doutor, Edelso era, entre todo os detentos, o que mais tinha jeito para a medicina, sendo um grande auxiliar no atendimento aos companheiros, aplicando injeções e fazendo curativos.
Enquanto nos apresenta a esses "heróis", Dr. Dráuzio esclarece que, embora privados da liberdade, existe no Carandiru um código de conduta não escrito, seguido à risca pelos presos. Como ele ouviu de um detento: "Aqui na cadeia um crime nunca prescreve".
"No mundo do crime a palavra empenhada tem mais força do que um exército."
Relatando sua experiência junto a pessoas que foram privadas até mesmo de esperança, o autor deixa transparecer, nele mesmo, uma transformação como médico e como pessoa.
"Com mais de 20 anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão".
O livro não poderia deixar de culminar com o relato do trágico massacre do Carandiru, que começou com um desentendimento entre dois rivais no pavilhão nove. Eram 14h30 do dia 1º de outubro de 1992, uma sexta-feira. Em poucos segundos eclodiu a rebelião. Trinta minutos depois, policiais entraram na Detenção com metralhadoras, cães e escopetas, sob ordem do Governador Fleury Filho. No final da operação, 111 detentos estavam mortos.
"Para ! Já chega! Acabou!" Uma, depois da outra, as metralhadoras silenciaram. Após os tiros caiu um silencio de morte na galeria. Os carros da polícia e do IML transportaram os mortos, até tarde da noite. Nas celas o ambiente era trágico. Dadá, um preso evangélico sobrevivente abriu a Bíblia e leu o salmo 91, chorando como criança com o trecho: "Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido, nada chegará à tua tenda".

DRAUZIO VARELLA
1999
Companhia das Letras

O autor:
Além de médico cancerologista formado em 1967, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, escreve sobre ciência na Gazeta Mercantil e é articulista da Folha de São Paulo. Publicou Macacos (Publifolha 2000), Rua do Brás (2000). Lançada em 1999, a obra Estação Carandiru recebeu o prêmio Jabuti do livro do ano e não ficção.


Quando li: 1999
Como adquiri: comprado na livraria Siciliano.

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